Cultura
“A inovação é o meu martelo”
Em seu novo livro, Bill Gates contorna o tema das fake news a respeito das vacinas e defende a criação de uma equipe de 2 mil bombeiros antipandemias


Você teria de viver sob uma rocha para não saber que estamos no meio de uma das pandemias mais devastadoras da história. O nível de devastação ficou claro quando, em maio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um relatório com a estimativa de que o excedente global de mortes causadas pela pandemia é de 15 milhões – quase três vezes a contagem oficial de óbitos por Covid-19. Outras autoridades pensam que o excesso de mortes global pode estar mais próximo de 18 milhões.
São números terrivelmente grandes, mas que, em comparação com a pandemia de gripe espanhola, de 1918-1919, empalidecem. A gripe espanhola matou cerca de 40 milhões de pessoas – o equivalente a cerca de 150 milhões em todo o mundo, usando os números atuais da população.
Então, por mais sofrida que a Covid venha sendo, ela não é “a grande” pandemia. De acordo com Bill Gates, esse espectro nos espera em um futuro não muito distante e, por isso, seria bom começarmos a nos preparar agora. “Será tentador supor que o próximo grande patógeno será tão transmissível e letal quanto a Covid e tão suscetível a inovações como vacinas de mRNA. Mas, e se não for?”, escreve ele em seu novo livro, Como Evitar a Próxima Pandemia, lançado no Brasil na sexta-feira 15.
É uma boa pergunta. A proposta de Gates é, essencialmente, que devemos fazer mais do que já estamos fazendo, e melhor e mais rápido. Ninguém pode dizer se a próxima pandemia será causada por um Coronavírus, Influenza ou algum patógeno que ainda não avaliamos. De toda forma, com sistemas de vigilância e diagnósticos laboratoriais melhores deveremos conseguir identificar rapidamente o culpado e elaborar contramedidas médicas antes que o surto tenha a chance de sair do controle.
Acima de tudo, escreve Gates, precisamos “praticar, praticar, praticar”, realizando regularmente treinamentos para pandemias e financiando uma equipe de 2 mil “bombeiros” globais de pandemia. Gates, que gosta de siglas, rotula essa equipe de Germ, abreviação de “Resposta e Mobilização à Epidemia Global”, em inglês.
Ele reconhece, no entanto, que tais medidas não valerão nada se, tendo identificado brechas em nossos sistemas de resposta à pandemia, não as corrigirmos. Em 2016, por exemplo, o Exercício Cygnus, da Grã-Bretanha, identificou lacunas na prontidão do Reino Unido para uma pandemia de gripe, incluindo estoques insuficientes de equipamentos de proteção, mas ninguém agiu de acordo com as recomendações, deixando o Reino Unido implorando equipamentos de proteção de outros países quando o desastre aconteceu.
Da mesma forma, os planejadores dos Estados Unidos sabiam, há muito tempo, que o diagnóstico em massa seria crucial no caso de uma pandemia. No entanto, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças não conseguiram implantar os testes de Covid na escala necessária, dificultando o rastreamento de contatos e medidas eficazes de isolamento. Para piorar, por causa do sistema federativo de governo dos Estados Unidos, os governadores estaduais, muitas vezes, não tinham certeza de quem respondia pelo quê.
O resultado foi que os Estados Unidos sofreram uma das maiores taxas de mortalidade por Covid-19 no mundo. Por outro lado, países como Cingapura, Vietnã e Canadá, que foram duramente atingidos pela Sars em 2003 e absorveram as lições, responderam rápida e decisivamente ao Sars-CoV-2, como é conhecido o Coronavírus que causa a Covid-19.
Até agora, tudo parece muito lógico. Mas, se prevenir pandemias fosse simplesmente uma questão de melhor logística e confiança em cientistas especializados, certamente já teríamos resolvido o problema. Se isso não aconteceu, é porque a ciência está cheia de incertezas. Especialmente nos estágios iniciais de uma pandemia, não haver dados confiáveis sobre a infectividade de um patógeno e seu modo de propagação.
Além disso, os cientistas são propensos a pontos cegos. Em 2014, por exemplo, poucos especialistas pensavam que o Ebola, um vírus que já havia causado surtos na África Central, representasse uma ameaça para países da África Ocidental, como Serra Leoa e Libéria. Da mesma forma, apesar da experiência do Sars, poucos especialistas pensaram, antes que fosse tarde, que o Sars-CoV-2 fosse capaz de disseminação assintomática
Em outras palavras, prevenir pandemias é um problema tanto epistemológico quanto técnico. Podemos nos preparar para ameaças pandêmicas conhecidas, mas os chamados eventos do Cisne Negro são, por definição, incognoscíveis e imprevisíveis. Se esse problema ocorreu a Gates, ele faz um bom trabalho em disfarçá-lo. “Sou um tecnófilo”, explica sem remorso. “A inovação é o meu martelo.”
Ele tampouco está interessado em abordar o papel da Tecnologia da Informação na divulgação de teorias da conspiração sobre vacinas ou desinformação sobre a eficácia dos bloqueios e obrigatoriedade de usar máscaras. Isso é surpreendente, uma vez que Gates foi acusado de usar vacinas para plantar microchips em populações inocentes e é um alvo proeminente dos antivacinas. Mas, em vez de pedir que uma equipe de reação rápida neutralizasse notícias falsas sobre vacinas, Gates evita a questão, escrevendo que confia em que “a verdade sobreviverá às mentiras”.
Eu não compartilho seu otimismo. De todo modo, a experiência da Covid demonstra que as teorias da conspiração agora apresentam um grande empecilho para a gestão de pandemias seguindo linhas científicas racionais. Não importa o Germ. O que é necessário é uma “Equipe de Resposta à Desinformação”. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ““A inovação é o meu martelo””
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.