Cultura

A Índia desde a era medieval

Em ‘Cidade da Vitória’, Salman Rushdie recorre ao fantástico para retratar uma história de opressões e lutas

O autor foi vítima de um ataque que o deixou cego de um olho – Imagem: Richard Burbridge
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Um dos nomes mais conhecidos da literatura contemporânea, ­Salman Rushdie é famoso não apenas por sua obra, mas por ser vítima de um juramento de morte proclamado pelo governo do Irã no fim dos anos 1980, e ainda válido. Em agosto do ano passado, ele foi alvo de um ataque que o deixou cego de um olho e lhe custou o movimento de uma mão.

O autor de 76 anos, de origem muçulmana indiana e radicado na Inglaterra, já havia terminado de escrever seu novo romance, Cidade da Vitória, quando sofreu a agressão. É, porém, impossível que o episódio não impacte a leitura do livro.

Rushdie é celebrado, entre outras coisas, pela capacidade de criar mundos, combinando fantasia e realismo, e de dar voz a personagens periféricos. Cidade da Vitória condensa algumas dessas características. O livro narra o nascimento, os dias de glória e a queda de um império no sul da Índia, chamado Bisnaga.

Mas, típico produtor de romances pós-modernos que é, Rushdie não se limita a, simplesmente, contar a história daquele reino. Ele lança mão, na construção de sua narrativa, ao que chama de os Versos Imortais de Pampa Kampana, uma profetisa cega que viveu até os 247 anos.

O realismo fantástico, como se sabe, é um fenômeno típico das literaturas periféricas, como a latino-americana e a indiana, e não deixa de ser uma maneira de desafiar as formas realistas mais comuns da literatura hegemônica – a exemplo da europeia.

Cidade da Vitória. Salman Rushdie. Tradução: Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras (384 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon

Nas mãos de Rushdie – ou de Gabriel García Márquez, um de seus expoentes mais famosos –, o realismo fantástico torna-se uma ferramenta poderosa de percepção da realidade.

Por meio do fantástico, Cidade da ­Vitória, assim como o premiado Os ­Filhos da Meia-Noite, lançado por Rushdie em 1981, recupera a história de opressão e lutas de seu próprio país. Ele cria um mundo no qual a linguagem é um conceito mutante, sem qualquer sentido de união nacional ou religiosa – algo intimamente ligado à ideia de nação.

A história é inspirada naquela do império medieval indiano de ­Vijayanagara e, nas primeiras páginas, o excesso de informação assusta. Mas, passado o impacto inicial, o romance flui. Embora toque em temas densos, como religião, história e tradição – justamente o que Rushdie era acusado de blasfêmia contra o Islã –, o romance é marcado também pelo humor e pela ironia.

Ainda que parte da fama de Rushdie se deva às polêmicas e às ameaças que sofreu, sua obra foi, ao longo dos anos, se estabelecendo por si mesma. E, nesse percurso, ­Cidade da Vitória destaca-se como um de seus melhores romances. •

Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.

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