Cultura

“A Hora Mais Escura” revela os problemas da sociedade norte-americana

O debate a respeito do filme mostra como os EUA têm dificuldades em condenar as práticas contrárias aos valores que, supostamente, defendem

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Atenção: este texto contém spoilers do filme A Hora Mais Escura

A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty), dirigido por Katherine Bigelow e indicado ao Oscar de Melhor Filme, está imerso em várias polêmicas. A maior de todas delas é a acusação de referendar e fazer propaganda da tortura, ao dizer que “interrogatórios coercitivos” da CIA tiveram papel na busca por Osama bin Laden. Toda a discussão, antes de chegar a uma conclusão sobre o filme e sobre a caçada ao terrorista, mostra quão problemática é a sociedade americana.

Vamos aos fatos. Bin Laden só foi encontrado na cidade de Abbottabad, no Paquistão, porque os serviços de inteligência dos Estados Unidos conseguiram identificar seu principal mensageiro. Este homem atendia pelo nome de guerra de Abu Ahmed Al-Kuwaiti, cujo nome verdadeiro era Ibrahim Saeed Ahmed.

Em A Hora Mais Escura, o nome do Kuwaitiano surge pela primeira vez da boca de Ammar (Reda Kateb) um detento torturado sistematicamente pela CIA. Ammar cita o Kuwaitiano fora das salas de tortura, numa pausa da tortura, ao ser alimentado dignamente por agentes da CIA.

Esta cena, logo no início do filme, foi suficiente para tornar Katherine Bigelow, e seu roteirista, Mark Boal, alvos de uma intensa campanha do chamado campo progressista da mídia norte-americana e britânica. Foram acusados de propagandistas da tortura, imorais, amorais. Glen Greenwald, no Guardian, mesmo sem ver o filme, afirmou que A Hora Mais Escura defendia a tortura. Naomi Wolf, no mesmo diário, escreveu que Bigelow seria “lembrada para sempre como serva da tortura”.

De fato, há muitos questionamentos a respeito do papel da tortura na caça a Bin Laden. Em abril de 2012, os presidentes dos comitês de Inteligência e das Forças Armadas do Senado dos EUA, os democratas Dianne Feinstein e Carl Levin, divulgaram um documento negando que presos sob tortura tenham citado o mensageiro de Bin Laden. Segundo os senadores, o relatório de 5 mil páginas sendo produzido há três anos sobre tudo envolvendo as torturas da CIA não encontrou nada do tipo. Em dezembro, Ali Soufan, o agente do FBI responsável por desvendar as identidades dos sequestradores do 11 de Setembro, negou que a tortura tenha sido responsável por achar Bin Laden. Em dezembro, Soufan afirmou à revista Foreign Policy que as cenas de Zero Dark Thirty eram “ficção”.

Para deleite dos “progressistas”, costumam defender a versão de que a tortura deu resultados pessoas interessadas nela. São exemplos deste comportamento Michael Hayden, diretor da CIA sob George W. Bush, e Jose Rodriguez, ex-diretor de Operações da CIA. Ocorre que pessoas sérias e isentas defendem uma versão dos fatos exatamente igual à mostrada no filme.

O papel da tortura

No ótimo livro Procurado (Man Hunt no original), Peter Bergen abre o capítulo seis contando a história de Mohammed al-Qahtani, que seria o 20º sequestrador do 11 de Setembro. Preso pelo Exército do Paquistão em dezembro de 2001, Qahtani foi entregue aos EUA e enviado para Guantánamo, onde foi torturado por 48 dias. Segundo Bergen, após o abuso Qahtani citou o nome do Kuwaitiano, ligando-o a Khalid Sheikh Mohammed, o idealizador do 11 de Setembro. A prova disso está neste relatório secreto da CIA sobre Qahtani, divulgado pelo WikiLeaks.

Não está claro, afirma Bergen na página 83 do livro, “se Qahtani cedeu essa informação por ter sido interrogado coercitivamente ou porque os interrogadores lhe contaram que KSM (…) estava sob custódia americana”. Bergen avança em sua explicação dizendo que, sozinho, o depoimento de Qahtani não era tão significativo. Posteriormente, no entanto, a importância do mensageiro viria a ser confirmada por pelo menos um outro detento torturado pela CIA, um paquistanês chamado Hassan Ghul.

Bergen prossegue sua narrativa, e o livro, mostrando que diversos outros avanços da investigação a respeito do mensageiro de Bin Laden ocorreram sem relação com a tortura e, em alguns casos, mesmo sem relação com a CIA. Foi a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), por exemplo, a responsável por identificar o telefone celular usado pelo Kuwaitiano no Paquistão.

Da mesma forma como o livro de Bergen, A Hora Mais Escura mostra os diversos avanços da Inteligência norte-americana que ocorreram sem o recurso à tortura. Para isso, centra a narrativa na história de uma agente da CIA (interpretada por Jessica Chastain) cuja vida profissional foi dedicada à caça de Bin Laden. O livro foi aclamado e o filme, vilipendiado.

Os valores dos EUA

O que toda essa discussão revela? O debate acerca do filme está centrado em uma dicotomia infeliz. Para uns, a tortura ajudou a encontrar Bin Laden. Para outros, ela não só não ajudou como tentativas de supor essa possibilidade quase equivalem à própria tortura.

Boa parte dos documentos da caçada a Bin Laden são, ainda, confidenciais. Vai demorar anos, talvez décadas, para que cheguem ao público. Mesmo quando isso ocorrer, talvez nunca se possa responder a controvérsia de forma definitiva. Para se ter uma breve dimensão da dificuldade: o relatório que os comitês do Senado dos EUA estão elaborando envolve a análise de 6 milhões de documentos oficiais da CIA. Isso sem contar as outras agências americanas.

Escapa à discussão o que deveria ser seu ponto central. Não importa em rigorosamente nada o resultado obtido pela CIA com suas torturas. Ainda que algum prisioneiro tivesse dito o endereço de Osama Bin Laden e em quais horários ele realizava suas orações, teria valido a pena para os Estados Unidos, supostamente defensores de valores universais como a liberdade e os direitos humanos, adotar práticas equivalentes a crimes de guerra para isso? Como lembra David Cole, professor de Direito na Universidade Georgetown, a tortura foi referendada pelos dois principais políticos norte-americanos da época, Bush e seu vice, Dick Cheney. E, até hoje, também lembra Cole, “não houve condenação oficial da conduta que violou os compromissos mais fundamentais da nação e do mundo com a decência e o estado de direito”.

Não houve condenação porque a administração Barack Obama tem um monstruoso telhado de vidro. Se descontinuou a tortura, Obama acabou de nomear à chefia da CIA John Brennan, suspeito de ter apoiado os “interrogatórios coercitivos” e homem-forte do programa de assassinatos seletivos com aviões não tripulados (os drones), uma prática igualmente execrável.

Da mesma forma que a administração Obama, a sociedade norte-americana, como deixa claro a discussão a respeito de A Hora Mais Escura, vive uma ambivalência entre os valores defendidos e os praticados. Para muitos, se a tortura e/ou os drones estão obtendo resultados, são aceitáveis. É este tipo de pensamento que permite a uma democracia conviver com o escândalo de Guantánamo e tolerar um governo torturador e outro assassino.

Confira abaixo o trailer de A Hora Mais Escura:

[youtube http://www.youtube.com/watch?v=SvXTjHL5BGY&w=500&h=281]

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