Cultura
A hora e a vez de Verenilde Pereira
Passados 25 anos da primeira publicação de Um Rio Sem Fim, a autora manauara vê seu livrro ser redescoberto
Por mais de 25 anos, Um Rio Sem Fim, de Verenilde Santos Pereira, permaneceu desconhecido de boa parte dos leitores. Mas, justamente no ano em que a Amazônia e seus povos foram para o centro do debate por conta da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), em Belém, o livro da autora manauara é reeditado por uma grande editora e conquista merecidamente a cena literária.
“Atribuo a redescoberta do livro à força das personagens”, diz Verenilde. Um Rio Sem Fim é uma pungente história amazônica que acompanha a trajetória de duas meninas, a cabocla Maria Assunção e a indígena Rosa Maria, criadas em uma missão católica sem vínculo com suas aldeias de origem. São levadas, ainda na infância, para trabalhar como empregadas domésticas em Manaus.
Rebelde e inventiva, Maria Assunção – filha de mãe negra e pai indígena como a autora, aliás – revela-se uma contadora de histórias nata. Na capital do Amazonas, é posta para trabalhar como babá de outra criança, mas consegue escapar dali e ensaiar um novo destino para si.
Rosa Maria, por sua vez, torna-se um “entulho” na casa da família rica onde é alocada, pois não consegue fazer o que é esperado dela. Mais tarde, arranjam-lhe um casamento. A jovem indígena já está, porém, alheia de si, vivendo em um mundo próprio com ecos da floresta que nunca quis abandonar.
A sinuosidade da estrutura narrativa parece ter ditado a própria trajetória do livro: escrito como parte de uma pesquisa acadêmica em 1995, foi publicado três anos mais tarde de forma independente e distribuído pela própria autora em paradas de ônibus ou em redações de jornal em Brasília, onde vive desde 1986.
Na época, a obra foi ignorada pela imprensa. Apenas em 2022, graças a um artigo na Folha de S.Paulo escrito pelo pesquisador brasileiro Rodrigo Simon de Moraes, da Universidade Princeton (EUA), começou a ganhar atenção.
Quando iniciou o mestrado em Comunicação na Universidade de Brasília, em 1993, Verenilde havia consolidado uma sólida trajetória como jornalista, tendo percorrido rincões da Amazônia, a fim de escrever reportagens sobre questões ambientais e indígenas, muitas delas espinhosas, denunciando casos de garimpo ilegal e violência contra mulheres e meninas.
Tinha também participado da criação do Porantim, em 1979, o primeiro jornal voltado exclusivamente para temas indígenas (no idioma do povo Sateré-Mawé, “porantim” significa “remo”, “arma”, “memória”). Acumulava ainda experiência como ativista tanto como professora no Seringal Catipiri, na região do Rio Purus, quanto como integrante da Operação Amazônia Nativa (Opan).
Em junho de 1986, enquanto fazia uma reportagem sobre mineração clandestina na área de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, ela foi coagida com uma ordem de prisão. “Um promotor me levou para a casa de uma juíza, e ambos me obrigaram a assinar um papel em branco. Me neguei”, relembra. “Isso foi tratado como abuso de autoridade.”
Um Rio Sem Fim. Verenilde S. Pereira. Alfaguara (184 págs., 79,90 reais)
Permaneceu quatro dias no cárcere e, graças à ajuda do líder indígena Álvaro Tukano, conseguiu escapar da prisão e da cidade. Logo depois, mudou-se para Brasília: “Vi jornalistas morrerem, e lideranças indígenas e outros desaparecerem”.
No mestrado, Verenilde pretendia pesquisar a cobertura feita por jornais impressos de episódios que decorriam do contato entre brancos e indígenas. No entanto, quando estava prestes a iniciar a escrita da dissertação, hesitou. A bibliografia e os conceitos selecionados pareciam não dar conta dos complexos matizes do encontro interétnico. Decidiu, então, optar pela ficção.
“Por meio da literatura, eu podia assinalar algo que faltava, que não fora dito e estava na instância do silenciamento”, conta. “E a literatura é feita dessas migalhas de histórias, da percepção de coisas que você ouviu, experienciou e sonhou.”
Um Rio Sem Fim começa com uma cena impactante. A narradora – aquela que tudo anota – rememora o encontro com dom Matias Lana, bispo italiano e líder de uma missão catequizadora na Amazônia, no dia seguinte à queima de livros da biblioteca local, promovida por um grupo de indígenas em uma grande fogueira.
“O que eles fazem, simbolicamente, é a queima daquela imagem de que os povos indígenas não têm sensibilidade nem inteligência”, afirma Verenilde. “A visão pejorativa transformou-se numa ideologia que se mantém viva até hoje. Este país foi construído sobre ela.”
O enredo principal apresenta a missão religiosa e as crianças que lá vivem e segue os passos de Maria Assunção e Rosa Maria em Manaus. No entanto, sob a forma de pequenos desvios narrativos – tais quais afluentes de um caudaloso rio –, alguns capítulos oferecem vislumbres de outras personagens, nominadas ou anônimas. A narrativa não é linear, jogando com a sinuosidade também temporal.
Um Rio Sem Fim será vertido para o inglês pelo premiado tradutor Johnny Lorenz. Enquanto isso, Verenilde escreve um novo livro. Aos 69 anos, sendo uma mulher afro-indígena, do povo Sateré-Mawé, lhe parece inevitável que as opressões sofridas ou presenciadas permeiem sua produção literária.
Ainda recorda o assombro que a leitura de Mrs. Dalloway, célebre obra de Virginia Woolf, lhe provocou, há quase quatro décadas. Encontrou um exemplar esquecido, já com marcas de umidade e páginas faltantes, no seringal em que trabalhou.
“Eu me perguntava que escrita era aquela que suportava os ápices lá em cima e lá embaixo do mundo”, diz. “Acho que foi esse assombro que me abriu para as possibilidades da literatura.” •
Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A hora e a vez de Verenilde Pereira’
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