Cultura

A história do ativista da periferia vítima da Covid que deixa legado

Cineasta, músico e africanista Sidnei Paixão fez vários projetos audiovisuais significativos e deu diversos ensinamentos de compaixão

Sidnei Paixão no desfile 2020 da Escola de Samba Lavapés Pirata Negro. Foto: Daniel Amorim
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Faltavam poucas horas para o fim de 2020. Com complicações agudas em decorrência da Covid-19, Sidnei Paixão não resistiu. Morreu no dia 31 de dezembro aos 48 anos.

Com falta de ar e dor no peito, Sidnei deu entrada no Hospital Estadual do Ipiranga, na capital paulista, no dia 26 de dezembro. No dia seguinte, foi transferido para o Hospital Municipal de Guarapiranga. Há cerca de dois anos ele já havia sido acometido por um aneurisma cerebral.

Este personagem anônimo, desde o começo da pandemia, em abril, fazia entrega na Zona Leste de São Paulo, com seu Uno Mille, de cestas básicas a pessoas que estavam com dificuldade na quarentena. Seu sobrinho, Eldinho Paixão, fazia parte dessa rede de ajuda e calcula que o grupo do qual ele e Sidnei integravam distribuíram juntos pelo menos 3 mil cestas só em 2020.

Padre Ticão

Algumas cestas de alimentos entregues eram provenientes de ações de Antonio Luiz Marchioni, o Padre Ticão, morto em decorrência de problemas cardíacos no dia 1º de janeiro. A família de Sidnei morou quase em frente à igreja onde o sacerdote foi pároco, em Ermelino Matarazzo, e ele, às vezes, almoçava na casa dos Paixão.

A mãe de Sidnei, Dalva Paixão, participou ativamente do movimento por moradia do Padre Ticão. Fruto dessa luta, por volta de 1990, mudou com a família para uma casa na Cidade Antônio Estevão de Carvalho, em Artur Alvim, também na Zona Leste de São Paulo, onde Sidnei viveu até a morte.

Naquela ocasião, ela fundou a Associação da União das Mulheres, entidade sem fins lucrativos, com ações voltadas para os direitos das cidadãs na localidade. Aproximadamente dez anos depois, o projeto foi estendido para alfabetização de jovens e adultos.

A mãe de Sidnei era profissional de fotografia e tinha estúdio em Ermelino Matarazzo. Ela era conhecida como Dalva Fotógrafa. Sidnei Paixão foi a continuidade da luta e do trabalho de sua genitora.

Projetos

Depois de realizar cursos de audiovisual, a partir de 2013 Sidnei começou a se dedicar a fundo à atividade, fazendo trabalho desde caboman até direção.

Bruno Baronetti teve o último contato com ele dia 20 dezembro. Mas eles se falaram com frequência ao longo de 2020 por conta de um projeto de documentário que ambos vinham realizando sobre o Seu Carlão do Peruche, maior referência viva do carnaval de São Paulo, hoje com 90 anos.

Historiador e pesquisador de cultura popular, Bruno reconhecia em Sidnei um autodidata e um realizador generoso de projetos voltados às manifestações populares e questões sociais, quase sempre com poucos recursos.

Ele fez um documentário sobre o Tio Mário, fundador da escola de samba Camisa Verde e Branco, falecido em 2019, e chamou Bruno para produzir e tentar captar recursos em editais para lançá-lo.

Para o padre Ticão, seu amigo pessoal, fez vários trabalhos audiovisuais. Um foi para a Associação da Casa dos Deficientes de Ermelino Matarazzo, um dos projetos assistenciais ligados ao sacerdote.

Ele fez ainda para o padre Ticão filmagem de abrigo sigiloso de mulheres que sofriam violência doméstica. Sidnei inclusive desenvolvia trabalho com elas, em sua maioria isoladas por conta da perseguição que sofriam.

Outro documentário que Sidnei havia feito recentemente foi sobre o culto ao Chaguinhas, na Capela Nossa Senhora dos Aflitos, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Chaguinhas foi um soldado negro, que na época da Independência do País teria liderado revolta por salários e acabou executado na atual praça da Liberdade.

Ativismo

Não era novidade Sidnei trabalhar com tema relacionado ao negro. Africanista, aprendeu sozinho as línguas africanas bantu e quimbundo.

Além de cinema, dava oficinas sobre africanidades e a diáspora africana. Durante a pandemia, ele fez lives de pan-africanismo e de refugiados no Brasil os quais ajudava.

Sidnei dizia que a graduação concluída em pedagogia foi fundamental para realizar suas oficinas. Ele frequentou cursos no Centro de Estudos Africanos da USP para se aprofundar, mas o autoestudo em torno do tema era uma característica sua. Por vezes, se identificava como Nzila Lemba Nzambi, seu nome em bantu.

Foi à África em 2019, com o professor de sociologia da Unifesp Tiaraju Pablo D’Andrea, para dirigir um documentário em Angola e fazer um clipe com o acadêmico, que também é músico.

Tiaraju morava perto da casa de Sidnei e pensavam juntos iniciativas diversas, inclusive no Centro de Estudos Periféricos, ligado à Unifesp Zona Leste, do qual era membro e fazia produções audiovisuais.

Ele criou um projeto com o sobrinho Eldinho Paixão e o seu tio, Eldo Paixão, na região de Ermelino Matarazzo, em 2014, chamado Samba de Tempo, inspirado na matriarca Dalva Paixão. A roda de samba segue ativa.

“Quando garoto, ele já frequentava blocos de carnaval com meu tio. Depois, passou a ir em diversas escolas de samba”, lembra Eldinho. Ele foi pandeirista de várias agremiações carnavalescas.

Era versador, compositor e gostava de resgatar o samba rural paulista. No Kolombolo Diá Piratininga, um dos principais agrupamentos de valorização e divulgação das raízes do samba de São Paulo, teve participação destacada por compor utilizando referências afro-paulistas.

Dançou break uma época da vida. É que ele foi um grande frequentador dos bailes blacks da periferia quando jovem.

Altruísta

“Esse contexto de musicalidade afro tem a ver com questões de classe dele, vítima de racismo. Ele era um homem negro, periférico. Tinha preocupação com a luta da periferia em São Paulo. Foi um ativista”, avalia Bruno.

“Há uns seis anos, ele começou a se atrair para questões raciais, que sua mãe sempre o chamou a atenção. Ele sentiu que precisava fazer algo. Passou a estudar mais os povos de Angola, já que muitos angolanos vieram para São Paulo como escravos”, relata Eldinho.

Sidnei tinha afinidade com as religiões de matrizes africanas, amizade com padre católico Ticão e passou a praticar nos últimos tempos o budismo.

Eldinho era muito próximo ao Sidnei. O envolvimento dele com a música se deve ao tio. Ele fez graduação em pedagogia e começou a trabalhar na área social por causa dele.

A ideia é montar na casa onde viveu Sidnei Paixão um memorial com a história dele, da mãe, da família, envolvida em lutas sociais. Dos seus projetos audiovisuais, muitos encontram-se inéditos, embora já estejam gravados.

“Me surpreendi com o tanto de gente que me ligou dando os pêsames”, conta Eldinho. “Ele era um cara sem maldade, muito preocupado com as pessoas. Alto-astral, humano, altruísta, uma alma iluminada”, diz Bruno Baronetti, que o conheceu anos atrás no Kolombolo.

Sidnei Paixão morava numa rua chamada Terra Brasileira. Foi enterrado no segundo dia do ano no cemitério municipal da Vila Formosa, na capital paulista, vítima da Covid-19. Um pequeno cortejo, atrás do carro funerário, momentos antes do caixão descer à cova, cantava algumas de suas composições e sambas que gostava. Foi um brasileiro anônimo valoroso que se foi na pandemia.

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