Cultura

A história do abandono

Em O Abismo Prateado, Karim Aïnouz dá sequência à temática de rompimentos e recomposição, sem a mesma força dos filmes anteriores

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Faz sete anos que o diretor Karïm Ainouz lançou O Céu de Suely. Até hoje a cena inicial do filme estrelado por Hermila Guedes pipoca nas minhas redes sociais sem qualquer gancho aparente. Assisti tantas vezes àquela abertura que quase consigo lembrar as frases da protagonista sem recorrer ao Google: “Eu fiquei grávida num domingo de manhã. Tinha um cobertor azul de lã escura. Matheus gravou um CD com as músicas que eu mais gostava e me prometeu fazer a pessoa mais feliz do mundo. Ele disse que queria casar comigo. Ou então morrer afogado”.

A fala, pontuada pelos “dis” e tis” de um sotaque pernambucano inconfundível, corre enquanto passa na tela as cenas de um vídeo amador: uma mulher de roupas ordinárias, aparentemente a mais feliz do mundo, com um homem de figura imprecisa, desfocada, num barranco de areia É a única imagem que temos de Matheus durante todo o filme.

O prenúncio do abandono soa como ironia quando Diana começa a tocar Tudo o que eu Tenho ao fundo. É uma ironia que comove: em seu lugar de origem, à espera do marido que nunca vem, tudo o que Suely quer é esquecer; para esquecer, é preciso viajar para longe, para o destino mais longínquo à venda num guichê de rodoviária. Tudo bregamente poético, como na música.

Era, para citar Gabriel Garcia Marquez, uma (bela) história sobre desencontros e amores contrariados. A estrada, mais que um pano de fundo, era elemento-central: ela aproxima, afasta e dá as ordens sobre sentido e direção; e só quem está na direção pode transgredir, ultrapassar, desobedecer a sinalização. A estrada, elástica, se estende mesmo quando a vida pede rompimento.

Não é outro o tema de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, dueto de Aïnouz e Marcelo Gomes, o diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus. A estrada é a porta de entrada para o sertão, o sertão físico e o sertão da “gente mesmo”, como escreveu Guimarães Rosa. O personagem, interpretado por Irandhir Santos, é um geógrafo que emerge num trabalho de campo para analisar a região às vésperas do início das obras de transposição. Tudo ali parece seco. O universo, prestes a ser inundado, é apresentado diretamente pelos olhos de um personagem sem rosto: são os movimentos da câmera e as músicas de um aparelho de som que acusam o estado de espírito do personagem que tenta superar, pela distância, o fim de um relacionamento.

Em Abismo Prateado, filme que estreia na sexta-feira 26, Aïnouz mudou a paisagem, o sotaque, mas não a temática. A paisagem agora é urbana: Violeta (Alessandra Negrini) é uma dentista de 40 anos que, certo dia, recebe uma mensagem por celular do marido informando que já não a ama; que está sufocado e precisa partir. Deixa só a pistas do seu destino, um filho de 14 anos e uma série de perguntas sobre o que fazer a partir dali.

Inspirado na música Olhos nos Olhos, de Chico Buarque, o filme acerta em muitos pontos e peca em muitos outros. Violeta, como se pode imaginar, quer morrer de ciúmes e quase enlouquece. Quando seu mundo desmorona o mundo exterior se manifesta: o ruído de britadeiras, das furadeiras, do tráfego, da broca do aparelho ortodôntico, sua ferramenta de trabalho, a água esguichada sobre um dente ensanguentado ganham um peso insuportável. Tudo remete a um abismo em velocidade de queda-livre. Difícil é ficar de pé. Por onde anda, Violeta esbarra em si, em um mundo desordenado que a machuca. Coleciona cicatrizes e reparos para poder seguir.

A história da queda é, sem trocadilho, a parte alta do filme. Aïnouz acerta, por exemplo, ao propor um diálogo com uma produção cinematográfica recente baseada no universo feminino. É o caso do encontro entre Violeta, a Suely da vez, com uma taxista interpretada por Carla Ribas. Parece um resgate em homenagem à personagem de A Casa de Alice, interpretada pela mesma atriz, que agonizava em um universo autoritário e sexista ao lado dos filhos e do marido – que era taxista. O diálogo mostra a transposição de papeis, como o eu-lírico da música de Chico Buarque.

O problema é o passo seguinte.

Ao atrelar ao roteiro a uma música pronta, o filme deixa claro, já de saída, que uma hora ou outra a personagem irá se levantar. Embora este não pareça ser o interesse do diretor, que se limita a deixar a estrada em aberto, como em O Céu de Suely, a trajetória da queda e ascensão precisa ser resolvida nas cerca de 24 horas em que se passa a história. É o tempo para que a personagem sofra, se rasgue, se segure, se derrame. Mas tudo soa raso demais (ou profundo de menos) conforme as horas sobram e avançam – e à medida que outros personagens se somam à história, caso de um pai e uma filha, também abandonados pela mãe, que Violeta conhece na orla carioca. Em raros momentos esse movimento é convincente ou suficiente.

Em seus trabalhos recentes, Karim Aïnouz se destacou como o cineasta das perdas e dos rompimentos – mais: é o cineasta do dia seguinte à queda, da musculatura da recomposição. Em O Abismo Prateado a fórmula parece gasta, repetida. Insuficiente. Menos poético e mais silencioso que seus projetos anteriores, O Abismo tenta vencer por pontos e não por nocaute. Em alguns momentos consegue; mas, ao fim da luta, não arrebata, não comove e não surpreende.

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