Cultura
A história de um caminho
A Calçada do Lorena, primeira rota a ligar o litoral ao planalto é reveladora das maneiras pela quais São Paulo se formou


Em 1975, Benedito Lima de Toledo (1934–2019), arquiteto que se dedicou à memória arquitetônica de São Paulo, decidiu procurar, na Serra do Mar, um caminho. Obviamente, não era um caminho qualquer, e sim a Calçada do Lorena, o primeiro a ligar o litoral paulista ao planalto.
Um ano antes, o arquiteto havia defendido sua tese de doutorado, intitulada O Real Corpo de Engenheiros na Capitania de São Paulo. Na pesquisa, ele descobriu que, dentre os trabalhos realizados por esse grupo ligado ao Exército Português, estava uma trilha pioneira, construída em 1790, mas depois apagada do mapa.
“Aos domingos, cedinho, encontrávamos o professor em seu apartamento para a saída da expedição, sempre com um aparato nada amador preparado por ele, que ia de bússolas a soro antiofídico, facão”, descreve, em Os Caminhos do Mar (Cultura Acadêmica, 208 págs., 104 reais), o arquiteto Alexandre Luiz Rocha. Ele é um dos integrantes do grupo que buscou, mata adentro, resquícios de pavimento.
Os Caminhos do Mar, finalista do Jabuti Acadêmico de 2025, é uma obra póstuma organizada a partir dos acervos de Toledo. Nele, revela-se – por meio de fotos, mapas, material iconográfico e textos um tanto erráticos – o início da história do rodoviarismo paulista.
No estado que ficou conhecido pelo lema “governar é construir estradas”, atribuído ao presidente Washington Luís (1869–1957), a história dos caminhos acaba por ser também a história da economia, da ecologia e da sociedade.
As feições que foi adquirindo a Serra do Mar espelham o velho lema “governar é construir estradas”
Para facilitar o transporte de açúcar e de outras mercadorias carregadas nos ombros de indígenas, diferentes governantes, ao longo dos séculos XVI e XVII, tentaram desbravar rotas e romper as barreiras impostas pela topografia, pela água do mar e da chuva e pela mata.
A primeira trilha seguida pelos jesuítas foi a do Rio Mogi, mas, naquela região, de acordo com os registros históricos, havia “tribos hostis”. Em 1560, foi aberto, serra acima, um caminho que só comportava as pessoas em fila indiana, descrito como “um dos piores do mundo”.
Essa rota, denominada Caminho do Padre José, em homenagem a José de Anchieta (1534–1597), foi, na verdade, herdada dos indígenas. “A história de São Paulo”, narra Toledo, “sempre esteve ligada à história de seus caminhos”.
Sob a bruma da serra foram sendo escritas as histórias do avanço da engenharia; da destruição da natureza, tão simbolizada por Cubatão; e das obras que se sobrepõem umas às outras, como se o passado tivesse de ser sempre superado.
A busca de Toledo pela Calçada do Lorena, esquecida conforme novas estradas iam surgindo e recoberta pela mata conforme a vegetação seguia seu curso natural, espelha a pesquisa que deu origem à sua obra mais famosa, São Paulo: Três Cidades em Um Século (Cosac Naify, 2004), que recupera lugares apagados de uma cidade sempre em veloz mutação.
Em Os Caminhos do Mar, o arquiteto Mauro Munhoz usa a expressão “expedição arqueológica” para definir o trabalho empreendido por Toledo: “É possível pensar, então, que a redescoberta da Calçada do Lorena sirva de ponto de partida para que seja contada uma história subjacente, sobre como o território da Serra do Mar foi mutilado pelos sucessivos trajetos que o atravessam”.
Ontem e hoje. Acima,o pouso da comitiva imperial, em visita a São Paulo, em 1846. À esquerda, o Rancho da Maioridade, revitalizado e aberto à visitação – Imagem: Arquivo Pessoal e Bruno C.Falcão
Foi por essa calçada, marcada pelo traçado em ziguezague, trechos bastante íngremes e lajes de pedras, que se iniciou o contato comercial entre o planalto e o litoral. “A calçada rompeu o isolamento em que se encontravam os paulistas por causa das péssimas ligações com o litoral”, descreve Toledo.
O ziguezague tinha o objetivo de amenizar a rota e os muros que a margeiam, proteger os pedestre dos precipícios. As árvores ao redor foram derrubadas para permitir que o sol tocasse o chão e minimizasse as enxurradas e os atoleiros.
Nos registros feitos pelos oficiais do Real Corpo de Engenheiros, há os estudos topográficos e hidrográficos que permitiram que, pela primeira vez, um caminho ali aberto não fosse tomado pela vegetação e pela água.
A documentação inclui um “mapa das madeiras de lei” e a referência à presença de “gusano”, um tipo de molusco, detalhe importante para que, futuramente, se pensasse no material adequado para a construção da Ponte do Cubatão.
O governador Bernardo José Maria de Lorena, que esteve à frente da Capitania de São Paulo entre 1788 e 1798, assinala, num ofício, que o caminho tinha “largura para poderem passar tropas de bestas”. No documento, ele cita ainda o obelisco construído no Pico da Serra – no mesmo ponto ergueu-se depois o Monumento do Pico.
Foi pela Calçada do Lorena que, em 7 de setembro de 1822, subiu o príncipe regente, para dar o grito da colina do Ipiranga. Na década seguinte, o Corpo de Engenheiros seria encarregado de planejar outra estrada, ligando Cubatão a Santos, que permitisse o tráfego de carros.
Uma das exigências do então presidente da província foi que essa estrada tivesse, no máximo, 12 voltas, pois eram “inadmissíveis” as 133 da Calçada do Lorena. O caminho, com 7,8 quilômetros, recebeu o nome de Estrada da Maioridade.
“A calçada rompeu o isolamento em que se encontravam os paulistas”, escreve Lima de Toledo
Em 1863, uma comitiva presidencial realizou, por essa estrada, uma viagem que levou 5 horas e 57 minutos. Um ano antes, um viajante havia registrado: “Com um bom animal pode-se fazer comodamente o percurso de Santos a São Paulo em um dia”.
A façanha, dessa vez, foi, em uma das regiões com maior índice pluviométrico do País, construir-se “uma estrada que vence a serra de Paranapiacaba sem cruzar, uma vez sequer, um curso d’água”. Cinco anos depois da inauguração, em 1846, a Estrada da Maioridade foi percorrida pelo imperador D. Pedro II e D. Teresa Cristina, em visita ao sul do Brasil. A partir de 1908, ela passou a comportar automóveis.
Para comemorar o centenário da Independência, em 1922, Washington Luís construiu, ao longo do Caminho do Mar, um conjunto de oito monumentos, hoje revitalizados. De cada um deles avista-se, quando a neblina permite, uma paisagem vasta e impactante.
Enquanto os carros seguiram pelo sistema Anchieta–Imigrantes, o corredor rodoviário-ecológico passou a fazer parte do Parque Estadual Serra do Mar, uma unidade de conservação administrada, via regime de concessão, pela Parquetur. Ali, em meio à Mata Atlântica, verde, água, pedra, passado e presente se entrelaçam de forma ainda surpreendente – levando ao deslumbre, mas também à reflexão sobre a história do Estado. •
Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A história de um caminho’
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