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A hierarquia entre os corpos

Em Pacifiction, Albert Serra mostra, por meio da sensorialidade, as marcas deixadas pelo colonialismo

A hierarquia  entre os corpos
A hierarquia  entre os corpos
O longa-metragem estreou nos cinemas na quinta-feira 20 – Imagem: Grasshopper Film
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A maioria dos filmes de ontem e hoje conta histórias. Uma minoria retoma relatos já lidos, a fim de esmiuçar o que neles ficou submerso, não dito. O método singularizou o percurso de Albert Serra, diretor espanhol cujos filmes propõem releituras estranhas do Dom Quixote, dos mitos de Casanova, Drácula ou de episódios da Bíblia.

Em Pacifiction, em cartaz desde a quinta-feira 20, a afetação estética do cineasta justifica-se, mais uma vez, como desvio. A desconstrução de temas literários revisita, desta vez, os relatos que, de Kipling a Graham Greene, passando por Conrad, Júlio Verne e até Tintin, criaram modos de ver o mundo. Como esses olhares europeus construíram o exótico, um misto de riquezas e misérias e um exílio para todo tipo de evasão.

Embora seja ambientado no Taiti, o filme poderia se passar numa ilhota baiana alvo de megaempreendimento hoteleiro ou em qualquer outro ­paraíso perdido da costa brasileira ou da Selva Amazônica.

No lugar dos conflitos em torno da presença de imigrantes nas antigas metrópoles europeias, Pacifiction troca o espaço para mostrar in loco de que forma as marcas da dominação se mantêm vivas.

O francês Monsieur De Roller ­(Benoît Magimel) é um misto de governante e homem de negócios, um exemplar da simbiose entre finanças, política e corrupção. Sob sua alçada circulam a equipe de um clube noturno, os funcionários de um hotel, nativos da ilha, militares, religiosos e turistas europeus.

O filme nem chega a esboçar uma trama, a oferecer uma denúncia para consumo confortável da plateia global de indignados. Sua visão é atmosférica e sensorial, detendo-se nos corpos e nos espaços.

A paisagem exuberante é tratada pelo diretor de fotografia Artur Tort não como beleza turística, mas como paraíso infernal. Entre o azul obscuro das cenas na boate e o azul transparente dos mares do Sul, Pacifiction distingue o lugar e os direitos de cada um por tonalidades da carne. A hierarquia imposta pela presença colonial é evidenciada nos contrastes étnicos.

Aqui, exploração, dominação, usurpação ou corrupção escapam da típica verborragia dos filmes politicamente simplórios para se tornar introjetadas, inerentes a um jogo em que não há inocentes ou vítimas.

A estética hipnótica de Albert Serra exige, mais até que os blockbusters, a experiência das salas de cinema. Recomenda-se, portanto, não esperar Pacifiction chegar na Netflix. •

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A hierarquia entre os corpos’

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