Cultura
A guerra pelas telas
‘O Cinema Que Não Se Vê’ disseca as disputas e tensões políticas que marcam a produção audiovisual no Brasil
As guerras híbridas, embora em alta, não são novidade. Sem essa denominação podem ser localizadas, por exemplo, nos embates travados na Unesco, na metade do século passado, sobre a proposta de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação. Era a tentativa de romper com o monopólio comunicacional operado pelos países do Hemisfério Norte, abrindo espaços para as produções do Sul. Foi o que bastou para os Estados Unidos, e depois o Reino Unido, deixarem a Unesco, levando com eles os recursos essenciais para mantê-la. Fato que só se repetiu como represália ao ingresso da Palestina na organização.
As duas motivações colocam em patamar semelhante a violência material contra o povo palestino e a violência simbólica contra as nações alijadas do mercado informativo global. São batalhas distintas, mas que clarificam a importância política da guerra cultural, nem sempre tão evidente como a guerra física.
A batalha local dessa guerra é dissecada pela jornalista e doutora em Sociologia pela Unicamp Ana Paula Sousa. Sua tese resultou num primoroso livro sobre as tensões históricas que marcam a luta cultural no País, tendo como foco o cinema e a televisão.
O Cinema Que Não Se Vê. Ana Paula Sousa. Editora Fino Traço (278 págs., 64,90 reais)
É um desenrolar de tensões da primeira à última página, apoiadas por um amplo conjunto de dados. Estão lá, sistematizados e analisados, os embates entre arte e indústria, cultura e mercado, identidade cultural e monopólio hollywoodiano.
São relatadas também as distâncias e as aproximações entre o cinema e a televisão, as defesas e os ataques à regulação do setor, formalizada na proposta de criação da Ancinav, a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, implodida graças, principalmente, à campanha desencadeada pela mídia tradicional, Globo à frente.
Mas a tensão que permeia boa parte do livro refere-se às disputas entre grupos de realizadores, separando os defensores da ideia de que “o cinema brasileiro só vingaria se investisse em poucos e grandes filmes” e os que “defendiam a divisão de recursos entre um número maior de filmes de pequeno orçamento”, como lembra a autora, sintetizando a disputa entre partidários do “cineminha e do cinemão”.
O texto, ao penetrar nas profundezas da história do audiovisual brasileiro, revela uma trama capaz de saltar das páginas do livro para um roteiro cinematográfico.
Ingredientes não faltam, captados pela visão perspicaz de uma pesquisadora que reúne neste trabalho o rigor acadêmico com sua indiscutível competência jornalística.
Veremos então a histórica política do audiovisual brasileiro, com suas disputas e tensões constantes, contada nas telas. Será o cinema do cinema, não dos seus produtos finais, e sim de suas entranhas.
Que venha logo. •
*Jornalista, sociólogo, escritor, professor universitário e apresentador de tevê.
Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.
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