Cultura
A garimpeira do agora
Em Contemporâne@, álbum marcado pela presença de novos compositores, Fernanda Porto, ex-adepta das batidas eletrônicas, mergulha no formato piano e voz


No início de 2020, enquanto a pandemia de Covid-19 obrigava o mundo a se recolher, a cantora, compositora e instrumentista Fernanda Porto punha fim a um longo período de recolhimento artístico.
Corpo Elétrico e Alma Acústica, primeiro álbum da intérprete em uma década – o último lançamento tinha sido Autorretrato (2009) –, foi lançado em formato de singles a partir de abril de 2020. O trabalho, como o próprio título explica, fazia uma combinação entre as duas linguagens musicais.
Nesse mesmo ano, ela colocou de pé um segundo projeto: Contemporâne@s, voltado para as redes sociais. Toda semana, a artista traria uma releitura dos compositores da nova geração da música brasileira.
De uma conversa com o DJ e produtor Zé Pedro nasceu a ideia de transformar as lives-homenagem em álbum completo, no formato piano e voz – um sonho antigo de Zé Pedro, fã da voz de Fernanda. Contemporâne@ (agora no singular), que chegou às plataformas de streaming no mês passado, reconduz a artista a um posto privilegiado no cenário musical atual.
“A proposta desse disco é mostrar as canções em seu aspecto mais puro. Voz e piano é um formato em que tudo fica transparente: melodia, harmonia, letra e a forma da canção”, diz ela a CartaCapital. “Acredito que isso empresta uma atemporalidade às canções e reafirma a sua qualidade original. A música defende-se com o mínimo de adereços, provando ser forte o suficiente para se perpetuar.”
Contemporâne@ reúne dez canções de autores como Jão, Bárbara Eugênia, Mahmundi e César Lacerda, entre muitos outros, além de uma composição inédita de Arthur Nogueira. “Fernanda é uma cantora que marcou a minha geração. Quando soube do projeto, perguntei se poderia tentar fazer uma canção para ela. Queria provar o quanto ela importava para a minha música”, diz Nogueira, criador da singela balada A Vida Não É Bela.
Fernanda Porto é uma intérprete de seu tempo e sempre achou as horas certas para mostrar seu trabalho. Quando surgiu, no início da década de 1990, foi erroneamente despejada no rol das cantoras “ecléticas”, que, na visão de parte da crítica, seguiriam os passos da sensação Marisa Monte – nesse cesto foram colocadas ainda as iniciantes Cássia Eller e Zélia Duncan.
Fernanda preferiu então o recolhimento. Surgiria novamente, de maneira plena, na década seguinte, ao divulgar um amálgama entre a MPB e o drum’n’bass, gênero de música eletrônica que era a sensação das boates inglesas daquele período. Canções como Sambassim e a versão de Só Tinha de Ser Com Você, de Aloysio de Oliveira e Tom Jobim, fizeram com que Fernanda Porto (2002), seu disco de estreia, pela Trama, se tornasse um dos campeões de venda da gravadora.
Fernanda conta hoje que, já naquele período, acalentava o sonho de criar um disco mais acústico. Ainda na primeira década dos anos 2000, a artista adicionaria ao repertório composições com influência da nova música pernambucana. Baque Virado, inspirada na sonoridade de grupos como Nação Zumbi, é um exemplo desse flerte.
“A proposta desse disco é mostrar as canções em seu aspecto mais puro”, diz a intérprete
No mesmo período, ela fez Chico Buarque trafegar pelo drum’n’bass numa versão de Roda Viva, gravada para a trilha sonora do filme Cabra-Cega (2004), de Toni Venturi. Em Contemporâne@, seu olhar se volta para a produção atual.
“É sempre um prazer ouvir novas versões das minhas músicas. Me sinto muito feliz”, diz o cantor Jão, sobre a presença de sua Olhos Vermelhos no repertório de Contemporâne@.
A proposta artística de Fernanda vai além da simples recriação: ela procura é deixar as canções serem contaminadas por seu próprio universo. E o que acontece com Olhos Vermelhos é um bom exemplo desse percurso. Na voz de seu autor, a canção soa como uma balada sertaneja – a popular “sofrência”. Fernanda não se aparta da dor da criação original, mas, com seu toque de formação erudita ao piano, empresta à composição uma melancolia mais discreta.
Já no caso de O Amor se Acabou, de Bárbara Eugênia, que trazia no DNA a música brega dos anos 1970, a transmutação foi em direção ao blues. Por Que Você Mora Assim Tão Longe?, de César Lacerda, é uma das poucas versões próximas da original.
“Quando gosto de uma canção a ponto de cantar e tocar, ela se torna fundamental no repertório, ainda mais quando se trata de trabalhar com linguagens de novos autores”, diz Fernanda. “É um convite irrecusável para mim. E o piano é como que meu parceiro nesse processo de desenvolver essas canções na minha voz.”
A ideia de jogar luz sobre a nova produção autoral deu-se cinco anos atrás, quando a cantora foi convidada para atuar como apresentadora em um programa de televisão. O projeto não vingou, mas Fernanda enamorou-se de diversas composições enviadas para a produção. Na construção de Contemporâne@, isso tudo foi mesclado à lista proposta por Zé Pedro.
O resultado é um disco que recupera uma tradição brasileira, que são os projetos de piano e voz, mas agora voltada aos novos compositores – muitos dos quais ainda não tiveram grandes oportunidades para mostrar seus talentos.
“Considero os últimos dez anos muito significativos para a nova música brasileira”, diz a pianista e intérprete que é, cada vez mais, também uma garimpeira. “Vejo essa geração com uma força diferenciada e expressiva em termos de qualidade e diversidade.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A garimpeira do agora “
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