Cultura
‘A Filha do Palhaço’ é antídoto para o nordeste caricato das novelas globais
O foco nos detalhes oferece uma representação mais autêntica e matizada, reivindicando espaço para que o Nordeste apresente sua complexidade e diversidade


O nordeste brasileiro sofreu ao longo dos anos um processo de imagético que distorceu e simplificou a sua complexa realidade. Esta transformação, tão bem documentada em A Invenção do Nordeste, de Durval Muniz de Albuquerque Jr., descreve um processo histórico de distorção narrativa — em discursos, imagens e políticas — que favorece certas agendas políticas e econômicas, muitas vezes alheias às verdadeiras necessidades da região. Neste jogo, as novelas da Globo têm desempenhado um papel notável na perpetuação de estereótipos de um nordeste folclórico.
A representação do Nordeste nas novelas oscila frequentemente entre extremos fantasiosos: de um lado, praias paradisíacas que promovem uma visão idílica e turística; do outro, um Sertão marcado por miséria e fome. A repetição de imagens de secas, festas juninas e sotaques carregados reforça um imaginário que, embora atraia audiências nacionais e internacionais, frequentemente se descola da realidade contemporânea da região. Em No Rancho Fundo, atualmente em exibição no horário das 18h, personagens com sotaques exageradamente marcados habitam cenários que parecem congelados no tempo. Maquiagens carregadas e um sol perpetuamente escaldante completam a caricatura. Elementos de “humor nordestino” e repentistas são inseridos, possivelmente para adicionar autenticidade, mas acabam reforçando a homogeneização narrativa.
Curiosamente, enquanto novelas ambientadas no Sudeste ou sul raramente são categorizadas por sua regionalidade, produções “do nordeste” são frequentemente rotuladas e reduzidas a essa identidade única e distorcida. Mesmo em tramas ambientadas fora do Nordeste, a identidade nordestina de um personagem é frequentemente destacada como sua principal característica, marcando-o como “outro” que veio “ganhar a vida” em terras supostamente mais promissoras.
A repetição incessante de estereótipos na mídia tem um papel sem comparação na construção de uma imagem homogeneizada da região. A insistência em destacar uma visão reducionista é uma escolha que serve para perpetuar uma narrativa conveniente, simplista e estagnada. Prejudica não apenas a percepção do nordeste pelos brasileiros, mas também a autoimagem dos nordestinos, que se veem constantemente refletidos através de um prisma que pouco dialoga com sua identidade.
O folclore, com seus ritos e narrativas, é uma expressão cultural autêntica que reflete as tradições e a história nordestinas. Seu uso em telenovelas, contudo, costuma perpetuar uma visão conservadora e estagnada da região. É como se o povo nordestino estivesse preso em uma tradição folclórica, desconectada das mudanças sociais e culturais contemporâneas. O nordeste de No Rancho Fundo é um relicário de tradições imutáveis, ignorando as correntes de modernidade e resistência que também definem a região.
Felizmente, há o contraponto de produções como A Filha do Palhaço, drama cearense dirigido por Pedro Diogenes e em exibição nos cinemas. Através das sutilezas do cotidiano de seus personagens, o filme acerta ao não recorrer às simplificações comuns que marcam as representações televisivas.
O filme aborda temas universais, como as relações familiares e o crescimento pessoal, e dialoga com audiências de qualquer lugar. O foco nos detalhes — uma conversa casual, os silêncios significativos, a interação entre pai e filha — oferece uma representação mais autêntica e matizada da região, reivindicando espaço para que o nordeste apresente sua complexidade e diversidade.
Em vez de perpetuar um “espaço nordestinizado” — essa construção limitada e distorcida frequentemente apresentada nas novelas — A Filha do Palhaço demonstra que as histórias podem e devem explorar a complexidade da experiência humana. O filme ilustra brilhantemente que as produções originárias do Nordeste, ou que apresentam personagens nordestinos, têm o potencial de ir além dos clichês: podem iluminar, questionar e enriquecer nosso entendimento sobre nós mesmos.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.