Cultura
A família da gente
Leia a crônica de Menalton Braff em homenagem ao cronista Rubem Braga


Tenho um tio, sujeito grave muito dado a pensamentos graves, que outro dia, num encontro familiar, discorria gravemente sobre escolher e ser escolhido. Este colunista participava da reunião apenas como ouvinte, que saber ouvir é uma de suas poucas virtudes. Mas era um ouvinte crítico, apesar de silencioso. Relutava em aceitar os argumentos desse tio que, para ter crédito, dispunha apenas de sua gravidade.
Hoje, finalmente, consegui entender o que aquele velho tio cheio de gravidade queria dizer e verifico encabulado que minhas relutâncias não passavam da resistência de alguém que se tem em alto valor. Sou o sujeito de meu destino, arquiteto de meu caminho, pensava então. Quanta empáfia!
Estas reflexões me ocorrem a propósito de um pensamento que se insinuou em minha consciência num momento de desprevenidas divagações.
Não sei a razão, mas hoje acordei com vontade de ter nascido em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. Se me tivessem dado a oportunidade de escolher, era lá que eu teria nascido. Pois nasci em Taquara, por onde passam dois rios, mas nenhum dos dois se transforma em água que voa, com esta sensação de desmaio, de esgarçamento, que é o transformar-se em fina cortina de brilhos que nunca param de cair. Nem Cachoeiro nem seu feminino.
Quisera ter uma casa em minhas recordações de infância. Uma casa sólida, secular, com porão escuro e mil segredos pelos cantos inacessíveis. Uma casa que já tivesse atravessado incólume tenebrosas noites de tempestade. Pois nem a casa onde nasci consigo recuperar das sombras do passado. Hoje, se me fosse dado escolher minha infância, brincaria com meus irmãos à sombra de um imenso cajueiro “no alto do morro, atrás de casa. Só para chegar lá um dia, bem mais tarde, espiar pela janela e descobrir que o cajueiro havia sido derrubado pelo tempo. O cajueiro com aquelas letras gravadas a canivete no tronco. Então eu poderia me sentir nostálgico e refletir sobre a irreversível passagem do tempo.
Não, eu não tinha razões para duvidar de meu tio. Há um espaço muito maior em que a vida nos escolhe. Escolher é mesmo a sina de todos nós, é nossa responsabilidade sartreana de seres livres, mas é ainda tão pouco o que escolhemos em comparação com aquilo em que somos escolhidos! Fui alguma vez correspondente internacional? Não, nunca fui e nada indica que um dia chegue a ser.
Ah, meu caro Rubem Braga, já não duvido de que tu, se te fosse dado escolher, teria escolhido Copacabana para teu berço, pois assim é o ser humano: o paraíso está sempre do outro lado do muro para que se possa sonhar e suspirar, porque o sonho e o suspiro é que mantém verde a esperança.
Tenho um tio, sujeito grave muito dado a pensamentos graves, que outro dia, num encontro familiar, discorria gravemente sobre escolher e ser escolhido. Este colunista participava da reunião apenas como ouvinte, que saber ouvir é uma de suas poucas virtudes. Mas era um ouvinte crítico, apesar de silencioso. Relutava em aceitar os argumentos desse tio que, para ter crédito, dispunha apenas de sua gravidade.
Hoje, finalmente, consegui entender o que aquele velho tio cheio de gravidade queria dizer e verifico encabulado que minhas relutâncias não passavam da resistência de alguém que se tem em alto valor. Sou o sujeito de meu destino, arquiteto de meu caminho, pensava então. Quanta empáfia!
Estas reflexões me ocorrem a propósito de um pensamento que se insinuou em minha consciência num momento de desprevenidas divagações.
Não sei a razão, mas hoje acordei com vontade de ter nascido em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. Se me tivessem dado a oportunidade de escolher, era lá que eu teria nascido. Pois nasci em Taquara, por onde passam dois rios, mas nenhum dos dois se transforma em água que voa, com esta sensação de desmaio, de esgarçamento, que é o transformar-se em fina cortina de brilhos que nunca param de cair. Nem Cachoeiro nem seu feminino.
Quisera ter uma casa em minhas recordações de infância. Uma casa sólida, secular, com porão escuro e mil segredos pelos cantos inacessíveis. Uma casa que já tivesse atravessado incólume tenebrosas noites de tempestade. Pois nem a casa onde nasci consigo recuperar das sombras do passado. Hoje, se me fosse dado escolher minha infância, brincaria com meus irmãos à sombra de um imenso cajueiro “no alto do morro, atrás de casa. Só para chegar lá um dia, bem mais tarde, espiar pela janela e descobrir que o cajueiro havia sido derrubado pelo tempo. O cajueiro com aquelas letras gravadas a canivete no tronco. Então eu poderia me sentir nostálgico e refletir sobre a irreversível passagem do tempo.
Não, eu não tinha razões para duvidar de meu tio. Há um espaço muito maior em que a vida nos escolhe. Escolher é mesmo a sina de todos nós, é nossa responsabilidade sartreana de seres livres, mas é ainda tão pouco o que escolhemos em comparação com aquilo em que somos escolhidos! Fui alguma vez correspondente internacional? Não, nunca fui e nada indica que um dia chegue a ser.
Ah, meu caro Rubem Braga, já não duvido de que tu, se te fosse dado escolher, teria escolhido Copacabana para teu berço, pois assim é o ser humano: o paraíso está sempre do outro lado do muro para que se possa sonhar e suspirar, porque o sonho e o suspiro é que mantém verde a esperança.
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