Cultura
A fama não lhe cai bem
Josh Hartnett, protagonista de Armadilha, de Shyamalan, conta por que, ao se tornar uma estrela, decidiu recusar os papéis de super-herói e galã


Todas as manhãs, assim que acorda, na zona rural de Hampshire, no sudeste da Inglaterra, o ator Josh Hartnett tem bocas para alimentar. As dos quatro filhos pequenos, obviamente, e ainda as de um cachorro, de vários porquinhos-da-índia, muitas galinhas e de um pequeno rebanho de cabras pigmeias. As cabras, comenta, são suas favoritas.
“São os animais mais doces do planeta”, diz, pelo Zoom. “Elas são como cachorros. Viveriam dentro de casa, se pudessem. Já vi pessoas com cabras em casa, com fraldas, mas achamos isso meio cruel.”
Hartnett e sua mulher, a atriz britânica Tamsin Egerton, passaram o confinamento nessa casa. Durante anos viveram num vaivém entre o Reino Unido e os Estados Unidos, mas, quando o terceiro filho estava a caminho, decidiram ficar em Hampshire. Desde então, Hartnett é uma atração na vida da aldeia local.
Ao contrário do que acontece em Nova York ou Los Angeles, “onde as pessoas só querem falar sobre suas carreiras”, diz, ali “ninguém se importa”. Como está no Reino Unido com um visto de casamento, Hartnett só pode ficar fora do país a trabalho 180 dias por ano. À noite, depois de as crianças terem ido dormir, ele às vezes encontra tempo para pintar. Mas essa existência permite, sobretudo, que veja os filhos crescerem.
“Sempre busquei algo que estivesse além do que esperavam de mim. E não queria ver minha vida engolida pelo trabalho”
A trajetória de Hartnett em Hollywood foi bastante comum. Os primeiros papéis interessantes em filmes indie – A Prova Final, de Robert Rodriguez, em 1998, e As Virgens Suicidas, de Sofia Coppola, um ano depois – o catapultaram a atuações de grande porte que exigiam pouco mais dele do que parecer um apaixonado.
Em Falcão Negro em Perigo (2001), viveu um papel heroico; em Pearl Harbor (2001), ficou entre o heroico e o apaixonado; em 40 Dias e 40 Noites (2002) viveu um personagem que se recusa a fazer sexo durante a Quaresma.
Mas Hartnett não gostou da atenção que veio com os grandes filmes. E, em pouco tempo, fez algo imperdoável para um aspirante a megaestrela: decidiu que não queria ser isso. Deixou Los Angeles, voltou para seu estado natal, Minnesota, e se afastou de seus agentes. Os tabloides ainda mencionam seu desaparecimento, embora já tenham se passado quase duas décadas desde então.
Na realidade, Hartnett só parou de trabalhar por 18 meses. Mas passou a recusar os papéis insossos de galã e heróis – caso de Superman – para os quais era frequentemente indicado e buscou projetos menores e mais desafiadores.
Durante algum tempo, fez papéis interessantes, mas que nem sempre deram certo. Foi o caso de Loucos de Amor (2005), O Resgate de Um Campeão (2007) ou Dália Negra (2006). “Alguns desses filmes foram bem-sucedidos. Alguns fracassaram”, diz. “Sempre busquei algo que estivesse além do que esperavam de mim. E não queria ver minha vida engolida pelo trabalho”, diz, aos 46 anos.
Recentemente, no entanto, vários projetos deram certo. Só no ano passado, ele chamou atenção como um ator de Hollywood inexperiente num filme mediano de Guy Ritchie (Esquema de Risco: Operação Fortune); fez um astronauta em um triângulo amoroso metafísico num episódio de Black Mirror; e teve um papel fundamental como um físico nuclear em Oppenheimer.
Em 2023. Hartnett fez uma participação especial como um astronauta em Black Mirror e viveu um físico nuclear em Oppenheimer – Imagem: Netflix e Melinda Sue Gordon/Universal Pictures
Agora está em Armadilha, de M. Night Shyamalan, o diretor de filmes com final surpreendente, como O Sexto Sentido, Sinais e A Vila. No filme, em cartaz no Brasil desde a quinta-feira 8, ele é um pai de família, mas também um assassino em série conhecido como “O Açougueiro”. O filme inteiro é uma armadilha preparada para pegá-lo, uma brincadeira de gato e rato turbinada.
Shyamalan já declarou o quão difícil é encontrar um ator como Hartnett. Assim que os artistas de cinema se tornam estrelas, eles “começam a pensar em como podem se proteger”. Em pouco tempo, começam a interpretar apenas pessoas da vida real ou se fixar em franquias. “Encontrar uma estrela de cinema genuína que seja também um grande ser humano disposto a arriscar tudo é algo raro.”
Hartnett conheceu Shyamalan na estreia de A Vila, em 2004, e sempre quis trabalhar com ele por considerar seus projetos bem diferentes: “Ele é alguém que assume muitos gêneros e entra nesses gêneros com outra perspectiva”. O convite demorou, mas Hartnett aprendeu a esperar.
O telefonema de Christopher Nolan para Oppenheimer veio cerca de 20 anos depois de terem falado sobre O Cavaleiro das Trevas. Hartnett não ficou interessado em interpretar Batman, mas se ofereceu para um papel em outro filme de Nolan, O Grande Truque, sobre mágicos de palco rivais. O papel ficou com Christian Bale, que Nolan havia escalado como Batman.
Foi um certo alívio, tantos anos depois, receber o convite para Oppenheimer. Ele diz não se arrepender de não buscar papéis de super-heróis, mas admite ter perdido uma oportunidade de trabalhar com Nolan.
Hartnett cresceu em Saint Paul, Minnesota, no norte dos Estados Unidos. Seu pai era músico e sua mãe “a garota que gostava de ver bandas”. Ele os descreve como hippies que, quando sua mãe engravidou, viviam numa moradia compartilhada.
O pai conseguiu emprego como gerente de obras, comprou uma casa, mas o casal logo se separou e a mãe mudou-se para São Francisco. Quando tinha 4 anos, o pai se casou com sua madrasta e passou a levar “uma vida muito mais normal no Centro-Oeste”.
Ao que parece, ele era uma mistura curiosa: de feitio naturalmente preocupado e amante das artes, era também um atleta que jogava no time de futebol do colégio. “Eu praticava muitos esportes”, conta. Mas foi também capturado pelo amor de sua madrasta pela pintura, e por muito tempo quis seguir essa veia.
“O interesse das pessoas por mim, à época, era quase doentio”, diz, sobre o auge do estrelato
Começou a amar o cinema na adolescência, ao trabalhar numa locadora de vídeos alternativa chamada Mr. Movies. À época, ficou obcecado pela Nouvelle Vague francesa e por diretores italianos como Bernardo Bertolucci e Federico Fellini.
Quando pergunto se mantém contato com a mãe, ele faz uma pausa de um segundo e diz: “Não, ela morreu no ano passado”. Era um relacionamento difícil. “Na minha juventude, passamos a maior parte do tempo separados. E ela tinha problemas com drogas e álcool.” Foi para a reabilitação e depois desenvolveu demência.
O pai teve um impacto muito maior em sua vida. E, ouvindo-o falar sobre ele, é difícil não traçar uma linha direta entre as prioridades de seu pai e as suas: a ideia de que o trabalho não é tudo e de que a família vem em primeiro lugar. “Meu pai não era alguém que valorizava a realização profissional de alto nível como meio de provar a si mesmo. Ele era dono de uma empresa e permitia que ele e seus funcionários trabalhassem quatro dias por semana.”
Ao longo da conversa, Hartnett mencionou as várias razões pelas quais evitou a fama excessiva. Quando lhe pergunto se houve um ponto crucial, ele explica que não foi tão simples, mas então diz: “O interesse das pessoas por mim, à época, era quase doentio”.
Atenção de quem? “Olha, não quero dar muito peso a isso”, começa. “Houve incidentes. Pessoas apareciam na minha casa. Pessoas me perseguiam.” Em certo ponto, diz, “um cara apareceu numa das minhas estreias com uma arma, alegando ser meu pai. Ele acabou na prisão”. Hartnett tinha 27 anos. “Houve muitas coisas. Foi uma época estranha.”
Durante a entrevista, conversamos brevemente sobre política, e terminamos com algo substancialmente mais leve: sua participação especial na última temporada de The Bear, série recém-indicada a 23 prêmios Emmy. É outro trabalho no qual, como em Armadilha, ele interpreta um pai, ou melhor, um padrasto – embora, presumivelmente, menos sanguinário. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A fama não lhe cai bem’
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