Cultura
A experiência tornada linguagem
A trilogia autobiográfica da autora dinamarquesa Tove Ditlevsen é um relato eloquente de uma vida atravessada pela doença mental e pelo uso de drogas


“Agora sou realmente uma viciada?, pergunto. Sim, ele diz, com seu sorriso tímido e hesitante, agora você é realmente uma viciada.” As majestosas memórias sobre arte e vício de Tove Ditlevsen, reunidas na Trilogia de Copenhagen, foram publicadas originalmente em dinamarquês entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970, e saíram em inglês em 2019.
Na segunda-feira 31, os três livros autobiográficos, chamados Infância, Juventude e Dependência, chegarão às livrarias brasileiras, em tradução de Heloisa Jahn e Kristin Lie Garrubo. A Trilogia de Copenhagen traça a história de Tove do nascimento ao estrelato literário, passando pelos anos sórdidos e angustiantes da dependência de drogas, que terminaram com seu suicídio em 1976.
A trilogia é estridentemente franca, totalmente reveladora – ela não faz o menor esforço para esconder os muitos episódios vergonhosos de uma existência caótica e devastadora.
Tove Ditlevsen nasceu em Vesterbro, um bairro de Copenhague, na Dinamarca, em 1917, filha de uma mãe inquieta e socialmente ambiciosa e de um pai socialista que foi demitido de vários empregos por causa do ativismo político. Seu bairro de baixa renda é cheio de bêbados e o futuro de Tove é – na melhor das hipóteses – casar-se com um “trabalhador qualificado e estável”.
Desde muito cedo, no entanto, ela tinha vestígios da doença mental que arrasaria sua vida adulta. Sua infância foi dominada por uma sensação sufocante de melancolia.
Tove é uma jovem incomumente séria, com poucos amigos e, aqueles que ela tem, parecem misteriosamente estrangeiros. “A infância”, escreve, “é longa e estreita como um caixão, e você não consegue sair dele sozinha.” Em vez de brincar no pátio de seu prédio, ela prefere ler e escrever poemas.
Este é, em parte, um Künstelerroman (narrativa sobre o crescimento e amadurecimento de um artista) em busca de rastros de um futuro estrelato literário no início da vida. A infância termina lindamente assim: “Minha infância cai silenciosamente ao fundo da minha memória, a biblioteca da alma da qual tirarei conhecimento e experiência para o resto da minha vida”.
Um dos muitos elementos quase milagrosos da prosa da autora – que, à primeira vista, parece despreocupadamente ingênua – é a maneira pela qual ela se fixa em um objeto e cola seus personagens nele, como se, assim, conseguisse aterrá-los em seu mundo físico.
Assim, ela escreve: “A raiva sombria da minha mãe sempre terminava com ela me dando um tapa na cara ou me empurrando contra o fogão”. Já seu pai é “grande, preto e velho como o fogão, mas não há nada nele que me cause medo”. E, finalmente, uma página depois, à medida que a infância passa, o fogão torna-se um ponto de solidez: “A sala navega no tempo e no espaço, e o fogo ruge no fogão”.
A prosa fria é interrompida por gloriosos floreios poéticos, e essas explosões de lirismo são mais que meramente ornamentais. Os livros lidam com o tempo e a narrativa alterna-se entre o presente e o passado para que, como na obra do norueguês Karl Ove Knausgård, nos movamos em um caleidoscópio que nos leva das particularidades observadas com minúcia ao amplo espaço de uma vida. “O tempo passou e minha infância ficou fina e plana como papel”, escreve ela, a certa altura.
A ascensão do nazismo a faz sentir-se “como se as ondas do grande oceano do mundo pudessem virar meu pequeno e frágil navio a qualquer momento”. Ela aborta uma criança porque isso atrapalharia sua escrita, e diz: “Não me arrependo do que fiz, mas nos corredores escuros e manchados da minha mente há uma leve impressão, como as pegadas de uma criança na areia úmida”.
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O último livro da trilogia, Dependência, é o mais memorável. Depois de assumir e descartar dois maridos, Tove conhece Carl, um médico, numa festa para comemorar o fim da guerra. No dia seguinte, embora ele seja “prognata e tenha 64 dentes na boca em vez de 32”, ela vai encontrá-lo novamente e Carl lhe aplica uma injeção de Demerol – um opioide.
“O quarto expande-se num salão radiante”, escreve ela. Mas, quando passa o efeito, “parece que um véu cinza e viscoso recobre tudo o que meus olhos veem”. Carl é um monstro e torna-se o último e pior de uma longa fila de homens que abusaram da fragilidade emocional de Tove.
Ele a controla, primeiro, com Demerol e, depois, com Metadona – outro opioide, ainda mais forte – e a carreira de escritora com a qual ela sonhava tão intensamente quando criança começa a definhar. Enciumado, Carl, silenciosamente, tira Ditlevsen de um jantar com Evelyn Waugh e depois a acalma com uma dose de Demerol. Até mesmo a conclusão meio esperançosa do livro é influenciada pelo conhecimento do leitor sobre o que está por vir.
Escrever sobre dependência de drogas e doenças mentais é difícil, porque essas coisas apresentam um desafio direto à nossa capacidade de transformar a experiência em linguagem.
A trilogia de Tove – que publicou mais de 30 livros, incluindo poemas, contos e romances – é notável não apenas pela honestidade e o lirismo. Seus livros viajam pelas profundezas obscuras da experiência humana e retornam, mortalmente feridos, mas ainda eloquentes. A trilogia Copenhagen é tão crua e comovente quanto An Angel at My Table, de Janet Frame. Assim como este, irradia a luz clara da verdade e representa a vitória final de uma vida que, para quem a viveu, deve ter parecido uma derrota. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A experiência tornada linguagem’
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