Cultura
A esperança no futuro
Passados 15 anos desde que foi proibido de viajar pelo governo do Irã, Jafar Panahi volta a São Paulo
 
         
        Parecia improvável, mas aconteceu. Desde 2010 impedido pelo regime teocrático do Irã de sair do país e falar com a imprensa, o cineasta Jafar Panahi se fez presente na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, na segunda-feira 27, logo após a exibição de seu mais recente filme, Foi Apenas Um Acidente.
Após ser ovacionado por mais de 600 pessoas, ele participou de uma entrevista pública conduzida por Renata de Almeida, diretora da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Eventos como esse se tornaram uma constante na vida do diretor desde maio, quando Foi Apenas Um Acidente ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O feito coincidiu com a revogação da condenação de 15 anos atrás.
À altura, Panahi foi acusado de “propaganda contra o sistema” por ter se posicionado a favor do Movimento Verde, que contestou o resultado das eleições presidenciais de 2009, vencidas por Mahmoud Ahmadinejad, candidato do regime dos aiatolás.
Desde então, o cineasta é mantido sob rédea curta pelo governo. Mas, de todas as restrições que lhe foram impostas, uma ele desobedeceu repetidamente, sem temer as consequências: a de filmar.
Mesmo proibido de dirigir por 20 anos, ele criou joias que mantiveram os cinéfilos atentos aos episódios de sua vida e de seu país, tornando-o símbolo de resistência política. Seis de seus 11 longas-metragens foram realizados de forma ilegal, driblando toda sorte de limitação para continuar a fazer cinema.
“Meus alunos reclamavam que era difícil fazer filmes naquela situação. E eu? Deveria reclamar também ou encontrar um caminho? Pensei: não posso ficar parado”, disse ele, no evento da Mostra, em farsi, ao lado de uma intérprete.
Munido de novas tecnologias audiovisuais, mas sem uma equipe com a qual trabalhar, ele se transformou em personagem constante de suas produções. Com um iPhone, rodou Isto Não É Um Filme (2011) dentro de casa, durante um período de prisão domiciliar. Contracenando com uma iguana de estimação, Panahi narra como faria sua próxima obra, em um fascinante exercício de metalinguagem. O documentário saiu do país em um pen drive, escondido, para ser exibido em Cannes.
Anos depois, quando já podia circular minimamente, adaptou uma câmera ao carro e gravou a si mesmo levando diferentes tipos populares pelas ruas da capital do Irã. Daí saiu Táxi Teerã (2015), que lhe rendeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim. “Não escolho os temas dos meus filmes. Eles que me escolhem”, afirmou.
Foi Apenas Um Acidente teve origem nos sete meses em que ficou detido na prisão de Evin, entre 2022 e 2023, após protestar contra a detenção do também cineasta Mohammad Rasoulof, autor de A Semente do Fruto Sagrado (2024).
“O que vai acontecer? Esse círculo de vingança vai continuar? As pessoas vão continuar a morrer? Ou elas vão parar?”
O gesto de Panahi reativou a condenação a seis anos de prisão sofrida em 2010, que já o havia feito permanecer três meses em cárcere. Se na primeira vez ele ficou em uma solitária, há quatro anos ele conviveu com outros presos políticos. Dos companheiros de cela, ouviu um sem-fim de histórias.
Ao ser libertado, após uma greve de fome, ele teve a ideia de uma trama em que um grupo de ex-encarcerados quer fazer um acerto de contas com o carcereiro que os torturava. Só que há um porém: como, na prisão, estavam o tempo todo de olhos vendados, eles não estão seguros de que o sujeito capturado é, de fato, o algoz. Os únicos elementos dos quais dispõem para reconhecê-lo são a voz e o barulho da prótese de sua perna quando caminha.
“A história de perdão ou vingança empurra o filme para a frente. Mas o que quero realmente falar é sobre o futuro. O que vai acontecer? Esse círculo de vingança vai continuar? As pessoas vão continuar a morrer? Ou elas vão parar?”, questiona o diretor, que vê proximidade entre seu filme e os brasileiros Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, e O Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho.
Sua narrativa é construída em um equilíbrio entre tensão e humor e no centro dele está, como sempre, o ser humano, pelo qual se interessou desde os primeiros passos na profissão, como assistente de direção de Abbas Kiarostami (1940–2016).
Por isso, ele caracteriza sua obra como cinema social, não político. “Cinema político tem partido: quem é a favor de mim é bom, quem é contra mim é mau”, diz. “Mas não existe ninguém completamente bom ou completamente mau.”
Ao conceder o prêmio ao filme em Cannes, a atriz Juliette Binoche, presidente do júri, saudou-o como um exemplo do poder do cinema e da arte de “mobilizar uma força que transforma escuridão em perdão”.
É essa também a motivação para a Mostra de São Paulo ter entregue a ele, nesta 49ª edição, o Prêmio Humanidade. O evento já exibiu praticamente todos os filmes do realizador, a começar por O Balão Branco (1995). Em 1997, ele integrou o júri internacional da Mostra.
Por determinação do governo, o novo trabalho de Panahi – repetindo o destino de obras anteriores – não será exibido comercialmente em seu país e, por isso, não pode representar o Irã no Oscar. Como se trata de uma coprodução, a França abraçou-o como seu representante na corrida por uma vaga na categoria de melhor filme internacional. No Brasil, sua estreia está marcada para o início de dezembro.
Apesar da recente possibilidade de viajar para o exterior, o diretor não se vê trabalhando em outro lugar. Seu cinema, afinal de contas, só faz sentido quando produzido a partir de sua própria realidade. Ele seguirá trabalhando em Teerã, mesmo sob o risco de novas restrições, com um mantra a guiá-lo: “É preciso ter esperança no futuro”. •
Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A esperança no futuro’
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