Cultura
A escuta antropológica
Viveiros de Castro vincula a guinada no pensamento crítico à compreensão das lutas indígenas no nosso continente
Eduardo Viveiros de Castro afirmou-se como um dos pensadores brasileiros mais influentes da atualidade. Sua maneira de fazer a crítica do progresso, do desenvolvimento e dos processos de modernização, recuperando a complexidade do pensamento ameríndio, assim como a força cosmopolítica de sua metafísica, impulsionou a reflexão crítica nos campos os mais diversos em escala mundial.
Não apenas a antropologia encontrou em seu perspectivismo ameríndio um de seus eixos fundamentais de reflexão e debate. A psicanálise, a crítica literária, a filosofia, a ciência política e a sociologia tampouco passaram incólumes ao abalo que seu pensamento provocou.
Tal fenômeno ocorreu porque, como poucos, Viveiros de Castro soube mostrar o que efetivamente significam os apagamentos epistêmicos produzidos pelas dinâmicas coloniais e capitalistas.
Ao mostrar que a “mitologia” ameríndia é, na verdade, uma complexa metafísica que nos permite tecer diálogos com momentos críticos de nossas próprias elaborações filosóficas contemporâneas, Viveiros de Castro deu um passo até então inédito.
Agora, em seu novo livro, Os Involuntários da Pátria: Estudos de Antropologia II, ele explicita as consequências políticas de tal escuta antropológica.
Nesse sentido, em um momento no qual nos perguntamos sobre onde estão ou de onde virão sujeitos políticos capazes de ter força real de transformação, Viveiros de Castro pede que olhemos para a mutação de nossas estruturas de pensar e agir, que será seguida da compreensão das lutas indígenas em nosso continente.
O capitalismo, afinal de contas, não é apenas um sistema de trocas econômicas. Ele é uma metafísica que naturaliza dicotomias teológicas (como a que marca nossa forma de distinguir natureza e cultura), que faz da crença no excepcionalismo humano a autorização para que o desenvolvimento de forças produtivas se torne, imediatamente, o desenvolvimento de forças destrutivas.
Pois há sempre humanos ainda não humanos por não se submeterem a um trabalho que só conhece a produção autorreferencial de valor. Há sempre não humanos que existem apenas para se tornar recurso disponível, até serem dizimados. E nada melhor do que as lutas indígenas para nos lembrar disso.
Falar sobre isso em um país como o Brasil, onde o debate ecológico é heroico, porém a todo momento silenciado, e onde até mesmo ministros de governos progressistas podem dizer impunemente que a Floresta Amazônica “é mais do que uma coleção de árvores, há gente lá”, é um gesto fundamental para a reconstrução de nosso horizonte político de lutas.
No momento em que mais um sonho de progresso, a autorização da extração de petróleo na Foz do Amazonas, produzirá seus monstros, faz muito sentido o chamado do título desse livro: “Tornemo-nos involuntários da pátria, desertores desse país criado como uma guerra civil contra seu meio ambiente e seus múltiplos povos”.
Os Involuntários da Pátria: Estudos de Antropologia II. Eduardo Viveiros de Castro. N1 Edições (320 págs., 104,90 reais)
No interior desse processo, Viveiros de Castro traça os marcos de uma cosmopolítica que está longe de ser a realização de um cosmopolitismo do tipo kantiano, que pulsa ainda no horizonte crítico dos intelectuais de nossa época.
Pois se o cosmopolitismo é a realização de uma humanidade que poderia encontrar-se em toda e qualquer sociedade, a cosmopolítica quer dar um passo ainda mais profundo e começar por se perguntar sobre o que nos foi interditado, devido exatamente a esta ideia de humanidade tão própria da modernidade.
O que significaria, por exemplo, incluir os não humanos na teoria política? Ou ainda insistir que a terra não é um espaço de afirmação de propriedades, mas uma potência de circulação livre e de quebra das ilusões de um tempo pensado como linearidade teleológica?
Mas, de todas as múltiplas questões que Os Involuntários da Pátria é capaz de produzir, uma merece especial atenção. Não é uma decisão simples escrever um livro de ensaios antropológicos que, depois de se colocar como que à procura de uma metafísica renovada para o político, termina dissertando sobre Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Oswald de Andrade.
Esse retorno à literatura não é a confissão de um pensamento “estetizante”, que mostraria involuntariamente como certa crítica social de cunho antropológico estaria, no fundo, simplesmente animada pelos impulsos disruptivos do modernismo estético. Ele é, antes, a reflexão crítica necessária em um País que, como nenhum outro, vinculou modernização social e modernismo estético.
Pelas mãos de seus arquitetos e construtores, não era questão apenas de modernizar, mas de construir esteticamente um povo. No entanto, em um segundo momento, aquilo que tinha sido destruído por tais construções habitou nossa literatura.
Habitou fazendo apelo à força de fuga de jagunços que viram onças, de antropófagos que constroem futuros. Ou apelando ao espaço de fora produzido por mulheres de classe alta que sentem o colapso de suas ilusões de classe, que sentem a emergência de uma “natureza terrível geral”, comendo baratas no quarto de empregadas.
A antropologia, que sempre foi a tentativa que inventamos de nos transformarmos a partir do contato com o outro, não poderia deixar de ser também a antropologia desse nosso próprio estranhamento. É, no fundo, como se fosse através dessas alianças improváveis que a verdadeira experiência política se dá. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A escuta antropológica’
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