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A Escola de Berlim em plena forma

Nos filmes alemães ‘Até o Cair da Noite’ e ‘Music’, em cartaz no brasil, as reviravoltas nas tramas interessam menos do que as sensações geradas por meio das cenas

A Escola de Berlim em plena forma
A Escola de Berlim em plena forma
Atriz. Thea Enre, de Até o Cair da Noite, foi premiada no Festival de Berlim – Imagem: Reinhold Vorschneider/HeimatFilm
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Um bebê abandonado é salvo por paramédicos e cresce nas montanhas da Grécia. Aos 20 anos, ele mata involuntariamente um homem. Na prisão, torna-se protegido de uma segurança, com a qual se casa e tem uma filha. Mas a revelação de um fato desconhecido culmina em tragédia.

É fácil reconhecer a trama de Édipo Rei adaptada de modo absolutamente livre em Music, décimo longa-metragem da alemã Angela Schanelec.

O entrelaçamento entre desejos, traições e ambições, característico das tramas dos filmes noir dos anos 1940, ressurge também em outro filme alemão que estreia nos cinemas brasileiros na quinta-feira 4: Até o Cair da Noite, quinto longa-metragem de Christoph Hochhäusler.

Ambas as produções ecoam a filiação de seus diretores à “Escola de Berlim”. O termo, forjado pela crítica europeia no início dos anos 2000, serviu para juntar realizadores jovens e maduros do país – dentre eles, Christian Petzold era o mais conhecido.

A ideia de “escola” também foi usada para enfatizar o parentesco estilístico entre os trabalhos dos diretores dessa geração. A combinação de aridez formal, narrativas vagas, personagens ensimesmados e motivações obscuras foi interpretada, então, como sintoma de uma Alemanha pós-queda do Muro, marcada por identidades imprecisas e passados renegados.

Music e Até o Cair da Noite retomam histórias conhecidas, confirmando que seus realizadores têm pouquíssimo interesse por tramas. Não há reviravoltas ou surpresas. Seus personagens agem como se as ações já não levassem a nada.

A obscuridade do filme noir não era só dos cenários e da fotografia. Ela recobria também a interioridade dos personagens, as ações e a moral da história.

Hochhäusler reinterpreta a ambivalência permanente do gênero deslocando-o para a questão mais contemporânea das identidades. O relacionamento hesitante entre a trans Leni (vivida por Thea Enre, premiada no Festival de Berlim) e o policial Robert afunda quando ela completa a transição.

No lugar da identidade fixa, o diretor apresenta seus protagonistas como ­personas em trânsito, com variações incessantes de função e valor.

A releitura que Angela Schanelec faz da tragédia de Édipo é mais radical. Seu cinema adota as elipses e desloca as ações para fora do quadro, produzindo um efeito de desdramatização que pode ser letal para o público ansioso.

O resultado é como o de uma obra abstrata, que arranca pele, carne e ossos para dar a ver uma linha tênue, uma sensação, uma cor. O que palpita nesses breves instantes deve ser aquilo que se chama beleza. •

Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.

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