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A dramaturgia da catástrofe

Em ‘Rainha Lira’, Roberto Schwarz recorre ao teatro elucidar os dilemas do presente

Trajetória. Nascido em 1938, o autor, de origem austríaca, lançou, na década de 1970, Ao Vencedor as Batatas, seu primeiro livro sobre Machado de Assis - Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress
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Mais conhecido por seus ensaios de crítica literária e cultural, Roberto Schwarz se arriscou, desde jovem, na poesia e na dramaturgia. É de poesia, aliás, seu primeiro livro, Pássaro na Gaveta, lançado em 1959 pela Massao Ohno, editora dos ­beats e dos surrealistas paulistanos.

Em 1974, enquanto estava no exílio na França, veio a público Corações Veteranos, coletânea de poemas editada pela coleção Frenesi, do Rio de Janeiro. No teatro, Schwarz deu forma ao balanço do golpe de 1964 e de suas consequências em

A Lata de Lixo da História, peça redigida em 1968, mas lançada apenas em 1977 – mesmo ano do seu primeiro livro sobre Machado de Assis, Ao Vencedor as Batatas.

Em Rainha Lira, Schwarz recorre mais uma vez ao teatro – forma de predileção de um dos seus mestres, Bertolt Brecht –, a fim de elucidar os dilemas do presente. Se em A Lata de Lixo da História a ironia fina de Brecht e de Machado de Assis (de O Alienista, em particular) lhe havia permitido explicitar a desfaçatez, entre moderna e arcaica, das classes dominantes então sustentadas pela ditadura militar, em Rainha Lira o cenário é outro.

RAINHA LIRA.Roberto Schawarz. Editora 34 (128 págs., 54 reais)

Trata-se agora do Brasil (o “Brazul” ou a “Brazulândia”, na grafia da peça) contemporâneo, país que passa por uma nova rodada do bloqueio de qualquer projeto de uma sociedade menos perversa.

A peça apresenta um conjunto de personagens cuja semelhança com figuras reais do presente brasileiro não é mera coincidência, ainda que, como nos ensinara o próprio Schwarz, a forma estética não seja uma simples reprodução do conteúdo histórico-social. Em Rainha Lira, a forma condensa a enrascada em que está metido o Brasil contemporâneo. O autor transforma em dramaturgia o modo recente, e relativamente novo, de restabelecimento da dominação dos vencedores.

Mas o problema não está apenas na vitória dos dominantes, que não deixou de ocorrer sob o governo liderado por representantes dos dominados. Do lado dos de baixo, o bate-cabeça é igualmente acentuado, a começar pela Rainha Lira, a “rainha Zigue-zague, também conhecida por Zague-zigue, que só entra para sair e só sai para entrar”, segundo o Bobo da corte.

A Rainha Lira encontra-se dividida entre as três filhas, que, no limite, funcionam como alter egos de seu vaivém permanente, um dos motivos de sua deposição. Valentina é a princesa que fora guerrilheira, e cujo coração ainda bate à esquerda. Austéria tem o gosto pelas finanças e conta com a admiração do mercado. Maria Glória, por sua vez, além de fazendeira, maneja o talento patrimonialista para os negócios e conchavos.

Em seus estudos sobre Machado de Assis, Schwarz havia encontrado na figura do narrador – no finado Brás Cubas, por exemplo – o eixo da formalização literária da volubilidade das classes dominantes no século XIX, ao mesmo tempo liberais e escravistas. Agora é o próprio Schwarz quem lança mão desse princípio formal para dar conta dos limites e indefinições do nosso progressismo. Assim como Brás Cubas, ainda que com sinal invertido, a Rainha Lira “hoje diz uma coisa, amanhã faz outra”, como fala Fidelino, um dos golpistas.

Uma figura notável da peça é a do Bobo da corte, autoconsciência irônica do intelectual, cujas palavras, à parte a eventual perspicácia, de pouco servem em face da confusão generalizada. É o Bobo quem joga luz sobre as inconsistências de um projeto político que continuava alimentando os adversários: “Até outro dia, nós não éramos tão desqualificados, embora – vamos admitir – o desastre estivesse pintando há tempo”.

Pela “Brazulândia” da peça, circulam o Bobo da corte e o “chefão”, saído das milícias para o poder

O desastre, em Rainha Lira, diz respeito à ascensão do “Chefão”, líder miliciano tornado dirigente máximo de “Brazulândia”. O “Coiso”, como passa a ser chamado, aparece para chutar o pau da barraca: “A minha regra é passar por cima da regra e avançar na rapadura, direto”.

A peça termina com a “segunda aclamação do Rei”. Mesmo preso, o Rei não perdeu a esperança, e tampouco a crença na capacidade de “consertar os estragos que causaram”. Mas mesmo ele, para quem “nossa classe dominante (…) não tem condição de dirigir nem clube de futebol”, já não tem mais ideia do caminho para “fazer disso um país passável, que não seja um Frankenstein à luz do dia”. Finalmente solto, pede sugestões. “Ignorante é quem não quer aprender.” Tal como no Rei Lear , boas intenções não bastam e, no nosso caso, a tragédia costuma vir desacompanhada da catarse.

Nascido em 1938, Schwarz, que tem origem austríaca, pertence à última geração de 1964/68. Trata-se de uma geração politicamente vencida, embora intelectualmente bem-sucedida. Desta crítica agarrada a cada presente e, simultanea­mente, antenada com o passado, sobressai a força e, ao mesmo tempo, ficam expostos os limites de sua perspectiva ensaística e/ou dramatúrgica.

Com Rainha Lira, esta dramaturgia de uma catástrofe em andamento, Schwarz nos ajuda a diagnosticar as especificidades do impasse contemporâneo. Mas, se quisermos de fato superar o “desastre”, será preciso também construir uma visão de mundo e um projeto societário alternativo, tarefa para a qual a sua verve crítica impiedosa, agora materializada em mais uma peça de teatro, continua funcionando como um ponto de partida indispensável. Ao menos enquanto o Brasil for o que é. •


*Professor de Sociologia da Unicamp.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A dramaturgia da catástrofe”

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