Cultura

A destruição da Ancine

A judicialização atinge a paralisada agência de fomento ao cinema brasileiro, que no momento motiva 70 mandados de segurança

Fonte: Reprodução
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Cerca de 140 produtores de cinema foram à Justiça Federal nos últimos meses contra o órgão que supostamente deveria protegê-los, a Agência Nacional de Cinema (Ancine), ajuizando mandados de segurança para assegurar a continuidade de seus filmes. Até a última segunda-feira 3 de agosto, mais de 70 liminares haviam sido concedidas a esses produtores pela Justiça em alguma das 33 varas federais do Rio de Janeiro. Há uma semana, o juiz Alberto Nogueira Júnior, da 10ª Vara Federal do Rio, condenou a Ancine a dar prosseguimento, em dez dias, ao processo do filme Divas do Brasil, da EF Produções, estabelecendo uma multa diária por desobediência de 500 reais, a serem descontados do salário do diretor-presidente interino da agência, Alex Braga Muniz. Trata-se de sentença judicial, não de uma liminar.

A judicialização do fomento à indústria audiovisual não foi uma solução almejada ansiosamente pelo cinema brasileiro. Ao contrário. A Ancine era uma gloriosa conquista do setor até 2018. Conseguiu irrigar um setor produtivo que movimentava mais de 20 bilhões de reais por ano, empregava cerca de 400 mil trabalhadores e criava um círculo econômico virtuoso – de cada real investido no cinema, voltavam 2,67 reais em impostos para os cofres públicos – fundamental para um país com alto índice de desemprego. A atividade audiovisual estava estimada em 1,7% do PIB em 2018. Anualmente, o crescimento setorial ficava na casa dos dois dígitos. Isso sem contar, obviamente, sua principal contribuição à cultura nacional, com a representação do que o Brasil é, pensa e faz, e como ele se insere na construção do legado humano.

Durante mais de um ano, os cineastas e as associações de classe tentaram alertar a agência para que voltasse a cumprir o seu papel. Em vão: escorada em evasivas financeiras mal fundamentadas (os recursos da Ancine são autônomos e sua aplicação é garantida constitucionalmente), depois em artifícios burocráticos grosseiros e mal formulados e, finalmente, em um aparato de perseguição ideológica interna, a Ancine pouco a pouco revelou-se inteiramente dominada por um espectro monstruoso. Consequência do rancor bolsonarista, que dirige suas baterias para todas as atividades produtivas em geral, mas nutre especial ódio pelas artísticas.

O setor movimenta mais de 20 bilhões de reais por ano e gera 400 mil empregos. A paralisação deliberada da Ancine tornou-se objeto de duas investigações em curso: o Tribunal de Contas da União abriu um procedimento de apuração e também o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, ouviria, na quarta-feira 5, na qualidade de testemunha, o servidor Mastroiane Bento Dias, afastado pela direção da Ancine de seu cargo por insistir em encaminhar ao Banco Regional de Desenvolvimento Econômico (BRDE) processos legalmente concluídos dentro da agência para fins de financiamento pelo Fundo Setorial do Audiovisual. Outros servidores voluntariam-se para depor ao MPF.

 

A Ancine tem, segundo ela própria informou ao TCU, mais de 1 bilhão de reais no Tesouro Nacional para fomento à atividade, recurso oriundo principalmente da taxação do audiovisual estrangeiro no País e das teles. Mastroiane não tem dúvidas sobre os motivos pelos quais foi afastado: “Em razão de minhas observações sobre os procedimentos de procrastinação das contratações, minha crítica em relação à junção dos fomentos, que vai atrapalhar mais do que resolver, e em razão de lembrar a Superintendência que o não envio de ofícios ao BRDE poderia gerar apuração de responsabilidades”, afirmou.

“A paralisação é intencional e cumpre ordem superior”, avalia o advogado Alan Muxfeldt da Silva, do escritório catarinense Muxfeldt & Seubert. Ele foi o responsável por iniciar a enxurrada de mandados de segurança ao defender uma angustiada produtora de Blumenau, Aline Belli, da Belli Studio, que via sua empresa e seu projeto entrarem num cenário de dolorosa ruína com a estratégia da Ancine. Aline pilotava a série de animação Boris & Rufus, exibida pelo canal Disney XD. Tinha 950 mil reais aprovados em edital da agência e articulou toda a produção em torno desse compromisso, que não foi cumprido pelo governo. Agora, Muxfeldt defende 30 clientes que buscaram o mesmo procedimento na Justiça. “Se isso ficar demonstrado (a paralisação intencional), constitui crime de improbidade administrativa”, ponderou o advogado.

Interromper o trabalho de um órgão da administração pública por meio de uma “chicana” de protelação constitui abuso de poder. A paralisação deliberada do trabalho da Ancine, que tem arrecadação própria em tributos específicos e cuja atuação é definida por lei, começou a ser articulada no governo de Michel Temer, como uma estratégia do grupo que chegou ao comando sob a orientação do ex-ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão. Mas ainda visava beneficiar um grupo determinado, segundo denúncia do MPF à Justiça Federal, que tornou réus oito ex-gestores daquela fase.

Ao assumir, Jair Bolsonaro mudou o foco para um lockdown político, utilizando a agência apenas para fins de cabide de emprego de correligionários e aliados políticos do Centrão, e passando a tratar ordens judiciais com evidente desprezo. Não é nenhuma novidade na ação bolsonarista: essa mesma linha é seguida no caso dramático da Cinemateca Brasileira, abandonada em São Paulo sem que o governo permita o socorro, na Fundação Casa de Ruy Barbosa, em processo de fechamento, na Fundação Palmares, conspurcada por um racista arrivista. E o esquema alastra-se pelas áreas do meio ambiente, da educação, da justiça e, atualmente, da saúde.

O prejuízo atual do colapso da Ancine é imenso. Estamos em agosto e não foi publicado nenhum edital de apoio ao cinema em 2020. Produtores brasileiros que tinham coproduções agendadas com empresas estrangeiras foram informados que, pela falta de contrapartida e de uma agenda razoável de cumprimento do projeto, os acordos foram cancelados. “Passamos meses fazendo tudo o que eles nos pediam, tentamos todos os contatos possíveis, inclusive por intermédio do governo do estado”, disse a produtora Aline Belli. “Informavam-nos que estávamos numa fila de análise, mas sem dar um prazo. Como eu poderia fechar um contrato de exibição sem a previsão de quando os recursos para finalizar a produção serão liberados?”.

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