Cultura
A desfaçatez das nossas elites
Ivan Angelo inventa um magnata da mídia para, de modo ferino, repassar a história brasileira desde os anos 1970


Vida ao Vivo, novo romance de Ivan Angelo, é uma pérola. Não apenas por seu conteúdo, que alude à história recente do Brasil, mas por sua forma: o livro alterna estratégias narrativas distintas, revelando peças de um quebra-cabeça cujo desfecho só se apresenta nas últimas páginas.
Quem conhece o autor sabe que esta não é a primeira vez que ele lança mão de tais artifícios literários. Basta lembrar, por exemplo, de A Festa, um dos grandes romances dos anos 1970, livro em que a fragmentação dos registros acaba compondo uma versão própria do Brasil durante a ditadura.
Já em Vida ao Vivo, o foco da balbúrdia está no comportamento das elites. Quem toma a frente do enredo é o maior magnata da mídia brasileira, dono da Rede Nacional de Televisão, “Doutor” Fernando Bandeira de Mello Aranha. É ele quem, na noite do dia 24 de novembro de 2021, data marcada para a estreia da nova novela das 9, Frutos Proibidos, aparece de surpresa no horário nobre da emissora, constrangendo, sem piedade, alguns dos seus pares do andar de cima.
Ao longo de 18 noites, cada uma delas narrava um capítulo – que contém ainda as repercussões do “dia seguinte” – vemos em cena “um homem de 77 anos, quase gordo, branco, pálido, de roupão branco (e) fular bordô derramando-se da nuca para o peito”. Há quase duas décadas vivendo de forma reclusa em seu suntuoso tríplex, no Centro de São Paulo, Mello Aranha encontra-se debilitado pelas sequelas da Covid-19.
Vida ao Vivo. Ivan Angelo. Companhia das Letras (296 págs., 79,90 reais) – Compre na Amazon
É nesse cenário que o magnata mostra ao público uma fotografia antiga, do dia em que resolveu adentrar em seu apartamento para de lá nunca mais sair. Na foto, além de Mello Aranha, de seu motorista, Raimundo, e de seu segurança, Gil, vê-se uma mulher aparentemente desconhecida.
Obcecado por encontrá-la, o magnata lhe oferece, ao vivo, 500 mil dólares e uma, a seu ver, irrecusável proposta de casamento. É esse o pano de fundo de uma trama cheia de reviravoltas, na qual o suspense é mantido até o fim. No desenrolar do processo, Mello Aranha vai repassando a própria trajetória – que, não por acaso, quase se confunde com a história recente do País, desde a década de 1970.
A inteligência de Ivan Angelo é ferina e está carregada de menções a autores da literatura universal. E sua ironia, ao mesmo tempo que alimenta o cinismo da personagem, não deixa de cumprir um papel de autodesmitificação.
É como se, ao desmascarar seu próprio caráter, com uma franqueza só possível aos que estão à beira da morte, o magnata revelasse a desfaçatez de classe das elites econômicas e culturais do Brasil, que, em suas feições modernas, mal escondem seu compromisso com as formas mais diretas e pessoalizadas de dominação. O segurança do magnata, o capitão Gil “Bozzano”, era um notório torturador que se repaginou como miliciano.
Dos anos 1970, quando assume o controle da empresa familiar, ao Brasil recente, sob a vigência do que ele, com pose de democrata, define como “neofascismo”, nada escapa aos apontamentos mordazes de Mello Aranha. Seja na época da ditadura, momento em que a Rede Nacional de Televisão passa por grande expansão, seja no período democrático, observa-se a mesma relação de promiscuidade com a política institucional.
Qualquer semelhança com a realidade pode ser apenas mera coincidência. Ou não. Fato é que, com maestria, Ivan Angelo nos faz repassar a limpo alguns dos acontecimentos que marcaram o Brasil das últimas cinco décadas. Um país que mudou, não resta dúvida, mas não muito. O “Doutor” Mello Aranha que o diga. •
*Fábio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
Sidarta Ribeiro percorre, de forma breve, a história da humanidade com o desejo de combater a desinformação em torno da Cannabis. As Flores do Bem: A Ciência e a História da Libertação da Maconha (184 págs., 59,90 reais) é um misto de divulgação científica com análise cultural.
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A condessa de Castiglioni foi, no século XIX, uma das mulheres mais fotografadas na França. Embora seu rosto tenha se tornado famoso, pouco se sabia sobre essa mulher até que a escritora e curadora de arte Nathalie Léger a desvendasse no livro A Exposição (DBA, 120 págs., 62,90 reais).
Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de e interesses.
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