Cultura
A consciência da Renascença
A Companhia das Letras publica por ora O Inferno de Dante Alighieri, o poeta que mudou o mundo


A Companhia das Letras é especialista em esquecimentos, e poderia citar mais de um, perpetrados com impunidade total, a mesma de que goza o demente Jair Bolsonaro. No caso, a editora esqueceu-se ao publicar um Inferno de Dante (ou nunca soube) que a sua personagem é a consciência da própria Renascença. Com ele começa no alvorecer do século XIV para logo desaguar na obra de Petrarca e Boccaccio. Pergunto-me se é bom publicar apenas o Inferno de Dante, embora reconheça a força da palavra, tão evocativa do Brasil de Bolsonaro.
De todo modo, a editora avisa que logo alcançaremos o Limbo e o Paraíso. Permito-me sugerir que os organizadores da publicação leiam neste ínterim a monumental obra de Francesco De Sanctis, grande pensador do século XIX. Para iluminar a mudança fundamental na história da cultura humana, é bom esclarecer que como promotores do novo tempo cabem perfeitamente Giotto e mesmo São Francisco, autor dos Fioretti. Com Francisco iniciou-se todo o movimento que pretendeu renovar a Igreja Católica, enquanto Dante escreveu a respeito de Giotto:
Credette Cimabue nella pittura
Tener lo vanto
Ma ora ha Giotto il grido
Si che la fama di colui oscura
Shakespeare, consciência do seu tempo, o reinado da primeira rainha Elizabeth, foi o resultado literariamente mais deslumbrante, assim como nas artes foram Leonardo, Michelangelo e Rafael. Não me pronuncio em relação à tradução da comédia, suponho-a benfeita por quem não é traidor. Quanto às ilustrações de Evandro Carlos Jardim, nada tenho contra elas, muito pelo contrário, ainda assim não se justificam para ilustrar Dante, porque, no meu entendimento, contam de uma forma onírica as aventuras do poeta, mas sem torná-las evidentes aos olhos do leitor.
Tive a ventura na vida de entrevistar o curador dos museus vaticanos Deoclecio Redig de Campos. Era um indivíduo deliciosamente competente em todas as suas ações, em todas as oportunidades, a começar pela devolução da primeira versão da Pietà esculpida por Michelangelo aos 26 anos, desfigurada pelo martelo de um fanático terrorista em uma das capelas de São Pedro. Deoclecio era mineiro, fora levado pelo pai para Roma, onde cursou as melhores escolas. Falava um português impecável, mas com sotaque romano, e plantava na cabeça um chapéu de feltro claro e abas contidas.
Entrevistei-o pela primeira vez em 1956, para a revista O Mundo Ilustrado, dirigida então por Joel Silveira. Trafegava por um largo período renascimental entre as Stanze de Rafael e a Capela Sistina, sem deixar de passar por uma deslumbrante pinacoteca enaltecida pela presença de Caravaggio, com o Enterro de Jesus Cristo, e uma Transfiguração de tirar o fôlego do próprio Rafael, que era na verdade o alvo dos seus melhores conhecimentos. Lá pelas tantas, aproximou-se do afresco de A Missa em Bolsena e chamou minha atenção para as técnicas empregadas na obra.
Deoclecio Redig de Campos, guia de duas visitas à Renascença. Na Missa em Bolsena, as broxas de Rafael têm a leveza dos pincéis da pintura a óleo
O pintor usava broxas imponentes para trabalhar no encontro com paredes recém-caiadas e aqueles instrumentos de alentado tamanho funcionavam com a leveza de pincéis de uma pintura a óleo. Graças a Deoclecio, a Renascença gerada por Dante e Giotto veio em todas as suas complexidades até mim, deslumbrado. Exatos 20 anos depois, voltei a visitar o curador do museu, desta vez acompanhado por minha mulher e amigos. Mal abri a porta de seu gabinete, Deoclecio me disse de imediato: “Mino, é muito bom encontrá-lo novamente”.
Então repetimos o trajeto percorrido 20 anos antes, com a passagem por uma nova pinacoteca de arte contemporânea, onde dominava um dos terrificantes retratos do papa Leão X, submetidos aos tormentos indevassáveis de Francis Bacon. A partir do retrato do mesmo papa pintado por Velázquez e colocado ao lado de um busto da mesma personagem, em uma sala da Galeria Doria Pamphilj, esculpido por Bernini, a mostrar que pintor e escultor enxergavam o modelo com olhos iguais.
Na Capela Sistina, Deoclecio fez largas referências às irritações que as pressões papais provocavam em Michelangelo. Perguntava o papa: “Quando a obra termina?” Respondia o artista: “Quando terminar”. Ao sabor do anedotário evocado pelo curador, percebemos que Michelangelo estava longe de ser bem-humorado, bem ao contrário de Rafael. Parece-me justo dizer que a professora Taranto de inglês no curso do Liceu Clássico do Colégio Dante Alighieri já traçava o caminho da Renascença despertada por Dante e Giotto.
As vicissitudes da vida me levam a frequentar o Cemitério São Paulo, e ali passo diante do túmulo da família Taranto, e então me detenho para imaginar uma prece que é, sobretudo, um agradecimento. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1187 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE DEZEMBRO DE 2021.
CRÉDITOS DA PÁGINA: LEEMAGES/AFP E MUSEUS VATICANOS
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