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A ‘cigarra’ Simone ressurge com um álbum de alma nordestina

Aos 72 anos, a cantora, hoje mais lembrada pelos memes de Natal do que pela sólida carreira, lança o primeiro apanhado de inéditas em nove anos

Da Gente, primeiro apanhado de inéditas da artista em nove anos, vinha sendo planejado desde 2015 - Imagem: Nana Moraes
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Para início de conversa, Simone adora o Natal. “Nasci nos primeiros minutos de 25 de dezembro, é uma festa que tem uma conotação gigantesca para mim. Ah, e adoro uva-passa”, brinca. Desde 1995, quando o disco 25 de Dezembro chegou às lojas com um recheio de canções natalinas, o nome da baiana Simone, de 72 anos, tornou-se motivo, primeiro, de brincadeiras e, depois, de memes, nas festas de fim de ano.

Embora tenha trazido ótimos resultados comerciais, a canção Então É Natal, versão de um sucesso de John Lennon, ofuscou, em alguma medida, o reconhecimento do talento da artista. Uma das principais intérpretes do País, Simone ressurge com Da Gente, álbum que chegou às plataformas de streaming no mês passado e tem direção musical de Zélia ­Duncan e produção de Juliano de Holanda.

Da Gente é o primeiro apanhado de inéditas de Simone em nove anos. Vinha sendo planejado desde 2015, mas, primeiro, as gravações foram adiadas porque a cantora resolveu se dedicar a um projeto em homenagem a Ivan Lins e, depois, veio o recolhimento imposto pela pandemia. A ideia do disco foi retomada no início de 2021, graças à insistência de Zélia Duncan.

A primeira canção a ser mostrada para ela foi Haja Terapia, de Juliano de ­Holanda, uma metáfora da Covid e da situação política atual. “Depois que Simone gravou, comecei a enxergar nela um paralelo com Cordilheiras e outras obras de Sueli Costa”, diz o compositor, referindo-se a uma das autoras mais gravadas por Simone.

“Foi como um soco no peito”, define a cantora, que, segundo relatos de pessoas­ presentes à audição, chorou ao escutar a música. Dado esse pontapé inicial, o repertório foi sendo burilado ao longo dos meses de confinamento. Em agosto do ano passado, o grupo reuniu-se para registrá-lo.

O resultado é um álbum de alma nordestina, com autores de Pernambuco, Bahia, Maranhão, Paraíba e Ceará, além de uma estranha no ninho, a carioca Zélia Duncan. No caso do estado que nos legou Luiz Gonzaga, Alceu Valença e Chico Science, entre muitos outros, alguns dos criadores surgiram no Reverbo, mostra que tem o objetivo de divulgar autores da nova geração. Holanda, produtor do álbum, é diretor artístico da Reverbo.

Uma das crias do projeto é PC Silva, autor de Ímã e Por Que Você Não Vem (esta em parceria com Joana Terra), canções de melodias delicadas incluídas em Da Gente. “Fico feliz em saber que os ouvidos do País inteiro estão voltados para cá. Simone, cigarra atenta, cantou a pedra e abriu janelas”, verseja PC Silva.

“Passei a andar com dois seguranças”, conta, ao recordar de quando gravou a canção de Vandré

Outro detalhe que chama atenção é o aspecto franciscano da produção, que, basicamente, se resume a violões, um baixo e uma discreta bateria. Bem diferente dos blockbusters dos anos 1980, quando Simone utilizava os serviços do produtor Mazolla e os arranjos de ­Lincoln Olivetti, que desenhou o padrão sonoro da MPB e da música pop do P­aís naquela década. “Para ela, foi uma delícia e uma descoberta escutar a voz em primeiro plano, acompanhada pelos violões”, diz Webster Santos, guitarrista e violonista que participou do disco.

Simone grava o que quer e o que gosta. Afinal de contas, nunca lhe faltaram opções. A artista despontou nos profícuos anos 1970. “Era um terreno fértil: a cada enxadada, uma minhoca”, lembra. Às vezes, os sucessos surgiam de modo inusitado. Certo dia, ela estava no estúdio e a dupla Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro mostrou-lhe Tô Voltando. “O Maurício dedilhou o violão e começou a cantar e o pianista Nelson Ayres, que estava ali comigo, imediatamente trabalhou na canção”, recorda-se.

Cigarra nasceu de uma ideia que ela mesma teve, no banheiro. Simone contou a história para Milton Nascimento, que, por sua vez, a repassou para o letrista Ronaldo Bastos, que iniciou os versos de ­Cigarra com ‘Porque você pediu uma canção para cantar/ Como a cigarra arrebenta de tanta luz/ E enche de som o ar’.

“Não tenho preconceito contra nada. Escuto música como quem analisa um quadro: gosto ou não gosto”, confessa a cantora. E como é uma intérprete da música de seu tempo, ela abraça o que há de novo e vibrante no cancioneiro atual. Uma das qualidades de Simone, como aponta Holanda, é que ela imprime sua personalidade e vira praticamente coautora das composições. Em alguns, casos vira de fato: Nua é uma parceria dela com o letrista português Tiago Torres da Silva.

Apesar de ser conhecida, sobretudo, como cantora romântica, Simone nunca se furtou a desafiar o poder. Ao Vivo no Canecão, de 1980, por exemplo, trazia uma releitura de Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. A sugestão, como lembra a intérprete, nasceu de uma conversa regada a vodca com Flávio Rangel, diretor do espetáculo – e só ele bebeu, diga-se. “Ele me disse que a música poderia trazer muitas coisas boas e muitas coisas ruins. Eu falei: ‘Eu quero!’”, relembra.

A abertura política estava então em curso, mas, ainda assim, a criação de Vandré fez com que Simone passasse por maus bocados. “De tão ameaçada, passei a andar com dois seguranças”, conta ela. Naquele momento, ela sempre se deparava com figuras de terno – notadamente, agentes da repressão – na primeira fila de seus shows.

Quem ouve hoje Haja Terapia, faixa de abertura de Da Gente, não tem como não pensar em política: O demônio lunático pousa sobre a catedral em chamas/ Metade das coisas que ele diz não faz o menor sentido/ E a outra metade eu preferia mesmo era nem ter ouvido. Simone entende a canção mais como um desabafo do que como um manifesto político. Mas, seja em suas metáforas, seja em suas escolhas, ela segue firmando posição. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1204 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A volta da cigarra”

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