Cultura

A cidade dos sonhos

Ao chegar em São Paulo, aprendi a conviver com o caos e me apaixonei pelos primeiros grafites na selva de pedra. Estou desconfiado que o sonho acabou

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“Alguma coisa acontece no meu coração”

Caetano Veloso, Sampa

Aos onze anos de idade, sabia que não tinha o menor talento para a arquitetura e para o urbanismo. Mas quando conheci Brasília, um canteiro de obras, uma cidade que brotava no planalto central do país, no meio do nada, desconfiei que tinha uma pequena queda.  

Quando vi os primeiros tratores amarelos da Caterpillar rasgando a terra vermelha, monumentos brotando do chão árido, a água transformando o sertão em quase mar, até mesmo uma imensa catedral se erguendo majestosa, da noite do pro dia, passou pela minha cabeça fazer pequenos projetos.  

Comecei então a roubar uns blocos quadriculados do meu pai meteorologista para planejar cidades, mais especificamente, a nova capital. Munido de régua e compasso, uma caneta hidrocor preta e lápis de todas as cores, fui traçando superquadras como a minha, a 405 Sul, que acabara de inaugurar, sem estar pronta, inaugurar parcialmente.

Haviam apenas cinco blocos de apartamentos construídos ali e eu ficava sonhando com a superquadra pronta, com todos os seus blocos de concreto, sua escola parque, seu supermercado, sua banca de jornal, sua padaria, suas árvores e suas flores do cerrado.

Os quadriculados das folhas do bloco do meu pai me ajudavam a projetar detalhes,  tintim por tintim. Coloria de verde a grama que sonhava plantar ali, de cinza as calçadas cheias de curvas, de amarelo o estacionamento, de marrom as árvores e os jardins tutti-frutti. Sem contar o céu azul, quase anil.

Eu havia deixado pra trás uma Belo Horizonte ainda pequena mas já caótica, com aquele trânsito infernal de Fuscas na Rua Espírito Santo, na Rua da Bahia e na Avenida Amazonas. Calçadas estreitas, buracos no asfalto, lixeiras caídas, a poluição visual, tudo era feio em Minas Gerais, perto daquela Brasilia de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, tão organizada, tão planejada.

Desenhava a Asa Sul do avião, já avançada em suas construções e na Asa Norte, que era só pé de caju, projetava prédios com fachadas coloridas, mas todos iguais.

Fazia croquis do Palácio da Alvorada, do Palácio do Planalto, da Praça dos Três Poderes, da Esplanada dos Ministérios, do Teatro Nacional, da Catedral e até mesmo do pombal que Jânio mandou construir ali.  

Sabia desenhar direitinho os dois candangos, aquela mulher puxando os cabelos no Alvorada, o busto do JK e a Justiça sentada na praça com os olhos vendados, naquele sol a pino de rachar a cabeça, derreter os miolos.   

Pensando bem, eu era um pequeno arquiteto que sonhava com uma cidade ideal, de avenidas largas, parques e jardins, muito verde espalhado entre ipês amarelos, nenhum sinal de trânsito, tudo muito organizado e funcional.

Juro que, menino ainda, imaginava um dia quando fosse velhinho, bem velhinho, ver a cidade pronta como aquelas maravilhosas que via nas folhinhas da KLM que o meu pai trazia pra casa todo dezembro.

Eu ia guardando dentro de uma pasta de cartolina, todos aqueles projetos para o futuro e me orgulhava deles. Mas minha obra foi bruscamente interrompida quando abandonei Brasília naquele 31 de março de 1964, e peguei a estrada de volta para minha cidade, que Carlos certamente já imaginava um Triste Horizonte.

Nunca mais peguei no lápis e papel para fazer projetos de arquitetura e urbanismo, mas continuava acreditando que um dia as obras em BH iam acabar e algum prefeito iria dar o habite-se para que os moradores pudessem usufruir da cidade, como um todo.

Muitos anos depois, cheguei a São Paulo e, como Caetano, aprendi a chamar-te de realidade. Cabeça feita de anos rebeldes, não queria mais uma cidade organizada nem toda pronta. Cheguei por aqui ao som de Tom Zé dizendo que a cidade eram oito milhões de habitantes de todo canto e nação, uma aglomerada solidão. Era aqui que amando com todo ódio, as pessoas se odiavam com todo amor, mas, apesar de todo defeito, te carregava no meu peito.

Aprendi a conviver com o caos. Com os nordestinos vestidos de Lampião cantando o Xote das Meninas na Praça da Sé, com os adventistas pregando nas ruas, com os hippies vendendo incensos nas calçadas.

Eu me apaixonei pelos primeiros grafites coloridos na selva de pedra e pelos japoneses que não falavam português na Liberdade. E, tipo Jorge Ben, por entre bancários, automóveis, ruas, avenidas e milhões de buzinas tocando sem cessar, eu achava tudo uma maravilha.

Pena que 2017 chegou e estou ligeiramente desconfiado que o sonho acabou. 

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