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A cantora restauradora: Monica Salmaso começa o ano com um tributo a Milton Nascimento

Por caminhos nada óbvios, a artista recria cada detalhe das canções às quais presta tributo e, não raro, dá a elas nova leitura

A cantora restauradora: Monica Salmaso começa o ano com um tributo a Milton Nascimento
A cantora restauradora: Monica Salmaso começa o ano com um tributo a Milton Nascimento
Encontros. Monica diz ter tido um “surto psicótico e com fúria criativa” durante o isolamento social. Um dos frutos do “surto” foi o projeto Ô de Casas, para o YouTube, no qual fez duetos virtuais com Ney Matogrosso, Chico Buarque e mais 169 artistas
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A cantora Monica Salmaso é uma aprendiz no universo das redes sociais. “Não sei nem a senha do meu perfil no Facebook”, diz, em entrevista a Carta Capital, por videochamada. Apesar disso, poucos nomes do showbiz­ brasileiro souberam, diante do fechamento das casas de espetáculos provocado pela pandemia, se reinventar como ela.

Tomada por um “surto psicótico e com fúria criativa”, como gosta de dizer, a intérprete de 50 anos de idade e 25 de carreira discográfica, embrenhou-se em atividades que vão de especiais no YouTube a álbuns dedicados ao violonista e compositor Guinga e ao poeta Vinicius de Moraes.

A recepção entusiasmada dos projetos fez com que Mônica visse o alcance do seu trabalho expandir-se, com o YouTube e o Instagram fazendo as vezes dos palcos. “Eu não tinha uma relação frequente com as redes sociais, mas, de repente, isso virou uma forma de manter o trabalho vivo e construir uma relação de afeto, por conta do que acontecia na fase do isolamento.”

E Monica não dá mostras de que vai diminuir o ritmo em 2022. Para o início deste ano está previsto o lançamento – por enquanto digital – de Miltons, registro de um encontro dela com o pianista ­André Mehmari, nascido de uma live na qual a dupla se debruçou sobre as canções de Milton Nascimento e de seus parceiros. O retorno definitivo aos palcos é, porém, incerto. “Me sinto muito insegura para fazer planos”, justifica.

No país das cantoras, Monica Salmaso é o que se pode chamar de “restauradora”. Enquanto muitas intérpretes buscam os compositores da moda e canções inéditas para formar o repertório, ela optou pela pesquisa, estudando a fundo os compositores para então registrá-los. “Tenho paixão pela música brasileira. Sou filha da linhagem de apaixonados por Villa-Lobos e Tom Jobim”, diz. “É por essas músicas que consigo enxergar o quão ricos nós somos.”

Por caminhos nada óbvios, Monica recria cada detalhe das canções às quais presta tributo e, não raro, dá a elas nova leitura. É o caso de Menina Amanhã de Manhã, de Tom Zé, que entrou na trilha sonora da novela Um Lugar ao Sol, da Globo. O tropicalista ironizava a felicidade imposta pela ditadura militar – “a felicidade que vai desabar sobre os homens”. Mônica enxergou na letra a dificuldade que as pessoas têm de ser felizes.

A capacidade de emprestar novas roupagens a velhas melodias está na origem do projeto que levou Mônica a romper a bolha do isolamento pandêmico: Ô de Casas, que estreou no início da crise sanitária e estourou no YouTube. O projeto reúne hoje 171 vídeos de duetos ­virtuais com autores, intérpretes e musicistas mais ou menos célebres. Ô de Casas rendeu-lhe, em dezembro, o Prêmio Governo do Estado de São Paulo para as Artes na categoria Comunicação Cultural. Ela será também uma das curadoras do Festival de Verão de Campos do Jordão, que começa este mês.

Na pandemia, a intérprete viu seu público crescer graças a projetos feitos para a internet

Os encontros virtuais estiveram na origem de uma segunda aventura: ­Caipira Online, que estreou em novembro. O projeto é uma rebarba da turnê Caipira, que teve de ser interrompida em 2020, deixando quatro apresentações pelo caminho. A cantora pediu revisão do projeto e trocou os quatro shows por quatro programas de vídeo, que incluem convidados como Rolando Boldrin e Sérgio Santos.

Em 2021, ela lançou ainda discos originados em registros anteriores a março de 2020: Japan Tour 2019, dedicado ao compositor e violonista Guinga, e ­Casa ­Branca, lançado inicialmente em Portugal, que une Vinicius de Moraes ao autor lusitano José Afonso e foi gravado durante shows com o cantor José Gil em Portugal.

Monica é a filha mais velha de um casal formado por um engenheiro e uma pedagoga. Ela conta que, criança hiperativa que era, tinha seus raros momentos de contemplação defronte à vitrola que ganhou de um tio. O aparelho tocou repetidas vezes os álbuns da coleção ­Disquinho, uma série de contos infantis com trilha sonora de composições de Braguinha com arranjos de Radamés Gnatalli.

Tempos depois, ela se apossou da coleção de LPs dos pais e, finalmente, do violão da mãe. O repertório era composto de MPB intercalada a bandas de rock como Pink Floyd. Naqueles tempos, Monica era elogiada por “cantar bonitinho”. Foi quando entrou em uma escola de música, em São Paulo, cidade onde nasceu, que se descobriu cantora. Os elogios dos professores e colegas deram-lhe coragem para avisar aos pais que abraçaria essa profissão.

A voz de Monica Salmaso, quente e grave, torna-se muitas vezes um instrumento extra. É o que se pode notar na faixa ­Sete Estrelas e Di Menor, de Japan Tour 2019, na qual ela se funde com a flauta e o clarinete. O esmero se revela em cada disco. Desde a estreia, com Afro-Sambas (1995), a cantora intercala discos temáticos – dedicados a Chico Buarque, Guinga, Heitor-Villa Lobos e música caipira, por exemplo – com coletâneas de canções. “Todos os discos de que gosto têm a preocupação de contar uma história. Cada lançamento é como um livro, com sonoridade, repertório e tratamento definidos”, diz.

Antes de a fama chegar, seu périplo artístico incluiu a participação em O Concílio do Amor, peça cult dirigida por Gabriel Villela, em 1989, e rondas pelos principais bares de música de São Paulo. O “não” dito a um megaempresário do showbiz, que desejou transformá-la em estrela pop, ajudou a escrever sua história de resiliência, marcada pelo critério rigoroso na escolha do repertório.

“Meu fígado não suporta que eu grave algo de que não goste”, brinca. “Meus discos são para ser escutados numa sala, defronte ao aparelho de CD. Mas, no mundo ideal, eles seriam ouvidos em todos os lugares, mesmo nas rádios populares e no churrasco.” Nos últimos dois anos, Mônica avançou um pouquinho mais rumo a essa sua utopia. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: LORENA DINI E YOUTUBE BRASIL

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