Cultura

A boa onda

A primeira Feira do Livro, no Pacaembu, em São Paulo, reflete a reorganização e o crescimento do setor ao longo dos dois anos de pandemia

Imagem: iStockphoto
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A partir da quarta-feira 8, a Praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, na capital paulista, será tomada por livros, livreiros, editores e autores. A Feira do Livro, que se estenderá por cinco dias e reunirá 120 editorias e livrarias de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte, nasce como reflexo da nova onda vivida pelo mercado editorial brasileiro.

“Somos o único setor, na área cultural, que cresceu durante a pandemia”, resume Paulo Werneck, um dos fundadores da Associação Quatro Cinco Um, realizadora da feira. “As pessoas deixaram de gastar com viagens, com cinema e redescobriram o prazer da leitura. Abriu-se assim uma janela de oportunidade para os editores brasileiros.”

O dado, exaustivamente divulgado, de que o faturamento do varejo cresceu 29,2% de 2020 para 2021, comporta várias e curiosas explicações. Para a presidente da Penguin Randon House norte-americana, Madeline Mcintosh, o bom momento do setor no mundo foi impulsionado pela popularização da ficção durante a pandemia.

Parece que, no período em que a realidade se mostrou especialmente dura, a busca por histórias inventadas cresceu. E cresceu ao ponto de ter compensado a queda das vendas no segmento de livros didáticos, abalado pelo fechamento das escolas. De acordo com a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, da Nielsen BookData, foram editados no País, no ano passado, 41 mil títulos – 24% novos e 76% reimpressões.

A efervescência tem se refletido no surgimento de pequenas editoras e livrarias de rua

No caso do Brasil, os resultados chamam especial atenção por duas razões: a pressão do governo Bolsonaro contra a cultura, de forma geral, e a grave crise das duas principais redes de livraria do País, a Cultura e a Saraiva, que entraram em recuperação judicial em 2019.

Vitor Tavares, presidente da Câmara­ Brasileira do Livro (CBL) e sócio da ­Loyola, recorre à palavra resiliência para falar daqueles que representa. “Os anos de 2016, 2017, 2018 e 2019 foram bastante delicados. Além da crise específica do setor, havia a crise econômica e política. Quando começou a pandemia, com as livrarias fechadas e a perda de poder aquisitivo, ficamos muito preocupados. E, de fato, alguns editores ficaram pelo caminho ou pararam de publicar”, relata, antes de chegar ao plot twist.

“Mas, no fim, vendemos muitos livros durante a pandemia. Mesmo obras antigas, como 1984 e Mulheres que Correm com Lobos, começaram a sair muito. Isso sem falar nos livros sobre empreendedorismo ou investimentos”, enumera. A última pesquisa disponível indica que os brasileiros leem, em média, 2,8 livros por ano. Nos Estados Unidos, a média é de cinco e, na França, de sete.

A efervescência tem se refletido, no último ano, no surgimento de muitas pequenas editoras e livrarias, várias delas de rua. “Acho que a literatura entrou na vida de mais gente”, diz Rita Mattar, sócia da Fósforo, editora que acaba de comemorar o primeiro aniversário. “Isso coincide com uma reorganização do mercado. Temos mais editoras menores, e vejo também uma lógica mais colaborativa.” A Fósforo, por exemplo, realizou coedições com Ubu, Luna Parque e Sesc.

Uma reportagem publicada pela Folha de S.Paulo contou pelo menos oito novas livrarias de rua abertas na cidade no último ano. E se, em Pinheiros, os novos espaços se somam às lojas de redes como Travessa e a Livraria da Vila, em outros lugares, as livrarias chegam desbravando espaços. É o caso da Livraria do Brooklin e da Cabeceira, na Vila Romana.

As livrarias responderam, de acordo com a Nielsen BookData, por 30% das vendas em 2021. Outros 30% couberam às livrarias exclusivamente virtuais. Mas Tavares, da CBL, conta que, conforme as restrições sanitárias são suspensas e novas livrarias são abertas, o e-commerce começa a cair um pouco.

O próprio Tavares abrirá, com dois sócios, uma livraria. O empreendimento ocupará a antiga loja Geek da Livraria Cultura, no Conjunto Nacional. “Todas as semanas temos notícias da abertura de umas dez livrarias. Entre elas, há as digitais, que às vezes ficam na própria casa do dono, mas também lojas físicas, pequenas ou de grandes redes”, diz ele.

A virada no negócio, concordam todos, não pode ser dissociada nem da busca pela companhia dos livros na pandemia nem das redes sociais – ­justo elas que, ao nos deter sobre os celulares, podem afastar-nos da leitura. Os ­influencers da área têm até nomes específicos, como BookTuber, para o ­YouTube, e BookToker, para o TikTok. O Instagram é outra rede na qual os livros, com sua fotogenia, brilham.

Foram também as ferramentas tecnológicas que deram impulso – na última década e mais fortemente nos últimos dois anos – aos Clubes do Livro. Quando Gustavo Lembert, dono de um dos clubes mais populares do País, a TAG, teve a ideia de criar uma start up de livros, em 2013, poucos botaram fé.

“Naquele momento, o mercado se resumia, basicamente, a duas livrarias, a Cultura e a Saraiva”, diz ele. “A Amazon chegaria aqui em 2014, ano em que TAG foi lançada. Nesse ano, a Economist publicou uma matéria com o seguinte título: ‘Brasil, uma nação de não leitores’. Mas a gente acreditava na mudança.” Hoje, há clubes de leitura para todos os gostos. Entre os mais famosos estão o de Manuela D’Ávila e o de Gabriela Prioli e Leandro Karnal.

Para estruturar a TAG, Lamber pesquisou desde clubes de vinhos até o velho Círculo do Livro, sucesso nos anos 1980. Hoje, diz que a essência desse modelo reside “na experiência e na curadoria”.

Foi-se descobrindo, nos ambientes virtuais, que, como diz Rita Mattar, “ler não precisa ser necessariamente algo solitário”. E é nesse potencial do livro como uma experiência coletiva que aposta a nova feira de rua. Mas não só nisso.

Canais. Ao mesmo tempo que surgem novas livrarias, como a Cabeceira, na Pompeia, BookTubers, como Tati Feltrin, bombam nas redes – Imagem: Alex Silva/Estadão Conteúdo e Redes sociais

A Feira do Livro, que antecede em pouco tempo a Bienal – que voltará a acontecer após quatro anos, em julho – fez questão de convidar não só editoras, como fazem as feiras universitárias, mas também livrarias. É que o atrativo não serão os preços baixos, mas a vivência do mundo do livro, com autores, oficinas e conversas. “Não há mercado sustentável com uma política permanente de 50% de desconto. Essa é uma falsa promessa, que leva ao aumento nos preços de capa para que os descontos sejam concedidos”, diz Werneck.

Cabe lembrar que, no ano passado, a proposta da Amazon de que as editoras oferecessem descontos entre 55% e 58% motivaram uma reação das editoras. O preço médio dos livros está em 43,92 ­reais e o desconto médio é de quase 24%. Como lembra Werneck, outra sombra que paira sobre o mercado, em meio à boa onda, é o aumento de cerca de 30% no custo do papel. Isso sem falar na ameaça de tributação, vinda de Paulo Guedes, em 2021.

“Apesar de ninguém falar do mal do livro, o livro é um produto que, no Brasil, está sempre ameaçado”, não nega, mesmo otimista, o presidente da CBL. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A boa onda “

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