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À beira do abismo

As cidades estão doentes e o Brasil bolsonarista vive um colapso moral, diz o ativista Ailton Krenak

À beira do abismo
À beira do abismo
“Não se trata de salvar a Terra, mas de nos salvarmos”, afirma - Imagem: Neto Gonçalves
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Nascido, em 1953, na ­região do vale do Rio Doce, em Minas ­Gerais, Ailton ­Krenak cresceu na floresta e, ainda muito jovem, fez da defesa da natureza a sua vida. Na ­Assembleia Constituinte de 1987, tomou o microfone para clamar pelo direito dos ­indígenas e pelo respeito à sua ­comunidade. Enquanto discursava, passava tinta preta de jenipapo no rosto – para os ­Krenak, um símbolo de luto.

Fazia então cinco anos que o primeiro indígena, Mário Juruna, tinha sido eleito para o Congresso Nacional. A segunda eleição de um indígena aconteceria apenas em 2018, quando Joênia Wapichana assumiu como deputada federal por ­Roraima. Em 2023, sete candidatos autodeclarados indígenas ocuparão o Congresso.

Dentre eles há dois bolsonaristas – que, obviamente, não representam as causas dos povos originários –, três representantes do PT e duas afiliadas ao PSOL: Sônia Guajajara e Célia Xakriabá. “É, sem dúvida, motivo de celebração podermos usar o termo bancada indígena”, diz Krenak, ativista ambiental de projeção internacional e um dos organizadores da Aliança dos Povos da Floresta.

Doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, autor de livros de sucesso e conferencista requisitado, ­Krenak tenta equilibrar seu modo de ser e viver com as demandas de um mundo veloz e afoito por vozes como a sua. “É mais fácil dizer sim do que dizer não, né?”, responde, quando questionado sobre os convites que, não raro, se acumulam e se sobrepõem. “Às vezes, vira uma confusão”, admite, sorriso mais de moleque do que de pensador. Embora passe hoje muito tempo em grandes cidades e esteja habituadíssimo aos ambientes de vidro e mármore dos hotéis, Krenak, mesmo nesses lugares, parece procurar um fiapo de natureza com o qual ele possa se conectar. “As flores de plástico não morrem”, cita, com ar de troça, a letra dos Titãs, enquanto roça os dedos no vaso sobre a mesa do café da manhã do hotel onde concederá entrevista a ­CartaCapital. “Não tem tato, não tem cheiro. Para mim é até ofensa.” Vê então, ao seu lado, uma espada-de-iansã. Leva os dedos à planta de verdade e sorri.

Em São Paulo, eu “piso em pessoas”, lamenta – Imagem: Fábio Teixeira/Anadolu Agency/AFP

Krenak, no dia da conversa, estava em São Paulo para participar de um evento cinematográfico, o BRLab. Paralelamente, encaixava na agenda entrevistas para a divulgação de seu novo livro: Futuro ­Ancestral. O novo volume forma um tríptico com os muito bem vendidos Ideias ­para Adiar o Fim do Mundo (2019) e A Vida Não É Útil (2020). “São as minhas reflexões em forma de texto.” Os títulos dos capítulos são bem mais sugestivos do que ­Futuro ­Ancestral contém: Saudações aos Rios, ­Cartografias para Depois do Fim, Cidades, Pandemias e Outras Geringonças, Alianças Afetivas e O Coração no Ritmo da Terra. “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugere que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”, escreve nas primeiras páginas.

No presente que Krenak enxerga, o futuro está em risco. A continuarmos neste ritmo de destruição, ele mal pode ser cogitado, na verdade. “O Homo sapiens, a espécie, está entrando em extinção”, repete, sem alterar o tom de voz, mas com ênfase.

CartaCapital: Para começar, pode explicar o título do seu novo livro?

Ailton Krenak: Somos todos aculturados pela ideia de que existe um pra trás, um agora e um pra frente. Temos o agora, mas a gente não suporta esse agora, então imagina um futuro ou pensa no passado. As conferências do clima têm discutido o risco da extinção, mas esse risco foi anunciado na Eco-92. Tudo que a gente precisava saber estava ali. Mas a gente não fez nada e continuou destruindo tudo, em nome dessa voracidade moderna. Nosso tempo é o aqui e agora. O nosso futuro está na Terra.

CC: Quais são as suas expectativas, na questão ambiental e a um possível desenvolvimento sustentável, em relação ao novo governo?

AK: Lula, ao ser eleito, foi saudado por chefes de Estado do planeta inteiro. Depois de um governo predatório, em todos os sentidos que se possa imaginar, e em meio à distopia que vivemos, com crise climática, pandemia e guerra, a eleição de Lula foi um alívio. Como tenho dito, ela trouxe um pouco de oxigênio para todos. Agora, sobre o que você pergunta… Primeiro, temos de substituir a palavra desenvolvimento pela palavra “envolvimento”. É de envolvimento que se trata. Eu não acredito em desenvolvimento. Devemos todos nos envolver e entender que precisamos de todos os outros organismos para que seja mantida a experiência comum de estarmos vivos. Não tem como a gente experimentar a vida, se não estivermos supridos por toda essa oferta de bem-estar que organismos não humanos – muitos dos quais nem vemos – nos oferecem. O homem acha que ele pode apenas ficar vivo, sem pagar nenhuma conta e, com ­isso, a caminhada humana deixa em torno de si um deserto. Quando falo dessas coisas, não se trata de salvar a Terra, mas de nos salvarmos. Não falo apenas dos índios, mas de todos nós.

“NÃO ENTENDO DE ONDE VEM ESSA IDEIA DOS BRANCOS DE QUE O SOFRIMENTO ENSINA ALGUMA COISA. NÃO QUERO APRENDER NADA À CUSTA DE SOFRIMENTO”

CC: E o que acha da criação do Ministério dos Povos Originários?

AK: A população indígena estava ­ameaçada de genocídio por este governo criminoso que agora acaba. Então, só esse gesto de anunciar a criação de um ministério voltado para a questão indígena precisa ser elogiado. A partir do início do governo, vamos ver como ele será, na prática. Porque ele nasce do zero, e vai precisar de orçamento e de estrutura. Outra questão política: o Estado precisa decidir o que fazer com as terras indígenas. Quem está sendo roubado, quando um particular pega as terras dos índios, se é o próprio Estado. E quando se destrói a floresta, estamos destruindo todos nós. Mas, quando o presidente se dispõe a criar um Ministério dos Povos Originários, acredito que haja um comprometimento com essas questões.

CC: No livro você pergunta: “Como atravessar os muros das cidades? Quais possíveis implicações poderiam existir entre comunidades humanas que vivem na floresta e as que estão enclausuradas nas metrópoles?” Como você se sente em relação a essa possibilidade quando está em São Paulo?

AK: Ontem à noite, andando a pé por aqui (na região da Rua Augusta, em São Paulo), saindo do (Espaço Itaú de) cinema e voltando para o hotel, eu pisava em pessoas. A cidade está doente e, se isso for naturalizado, a cidade, como experiência social, morrerá. Quando venho para São Paulo, fico com gripe, fico com febre, com erisipela, catapora (risos). Você vê o Padre ­Júlio Lancelotti? Ele, muitas vezes, tem a expressão exaurida. Uma pessoa não pode apenas doar. Doar exaure. Precisamos receber também. Vivemos um tempo muito árido, mas não podemos nos esquecer de que a produção de afeto é recíproca. Tem aquela música (É Tudo Pra Ontem) em que o Emicida e o Gilberto Gil cantam o fragmento de um mito do povo Krenak. ­Viver é partir, voltar e repartir. Viver é ­partir, ­voltar e repartir. Esses versos são uma brincadeira com as palavras, mas eles falam também sobre a circulação de afeto.

FUTURO ANCESTRAL. Ailton Krenak. Companhia das Letras (128 págs., 34,90 reais)

CC: A circulação de afeto para enfrentar a circulação de ódio…

AK: Precisamos de um escândalo, com as pessoas em transe, batendo as cabeças nos muros, rezando juntos. Tenho chamado esse movimento de ecumenismo fascista, porque reúne católico, evangélico… Eles rezam e pedem golpe. Quando a gente olha pra isso, e olha também para essas pessoas nas ruas de São Paulo, remontando nas ruas as casas de onde foram expulsas, a gente entende que está à beira do abismo. O Martin Luther King, em uma de suas marchas mais importantes, uniu evangélicos e muçulmanos. E a bronca dos norte-americanos com isso não era porque eles eram evangélicos, mas porque eram negros. Essas pessoas, aqui no Brasil, estão que nem os hebreus enfiando papelzinho no muro. Isso só se explica por algum abismo cognitivo. Vivemos um colapso moral. São sonâmbulos que zanzam por aí sem saber para onde estão indo ou o que estão fazendo. Eles acusam o próximo governo de projetar banheiros unissex. E são terraplanistas. Essa gramática fascista maluca me fez até perder a minha fé em disco voador (risos). Mas é melhor que enfiar bilhetinhos em muro, né? Imagina se eu escrevo um bilhete e o general Braga Netto lê?

CC: Acredita numa reconfiguração do Estado Democrático de Direito?

AK: A Colômbia, um Estado pan-amazônico, enfrentou uma situação na qual o presidente que se elegeu teve de compor forças e criar uma governança plurinacional. A gente tem experiência no Chile, na Bolívia, e isso tudo tem sido discutido em busca do exercício da democracia, mas de uma democracia capaz de construir novas configurações na sociedade.

CC: Como foi sua experiência pandêmica, um dos temas do livro?

AK: Em algum momento, quando falávamos sobre essa travessia que todos enfrentamos, alguém me perguntou: “O que a Covid-19 nos ensinou?” Ora, por que alguém acha que a pandemia deveria nos ensinar alguma coisa? A pandemia não veio para ensinar nada, mas para devastar as nossas vidas. O que eu digo é que não entendo de onde vem essa ideia dos brancos, de que o sofrimento ensina alguma coisa. Não quero aprender nada à custa de sofrimento. Uma coisa que sei sobre a pandemia é que a nossa acomodação psicológica ao ambiente virtual, intensificada nesse período, não deve ser saudável. Quando temos uma tela entre nós, não estamos conversando diretamente uns com os outros. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “À beira do abismo”

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