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A autonomia do corpo

A atriz Sydney Sweeney torna Imaculada, terror com um quê de filme B, um projeto divertido e provocante

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Sydney, estrela das séries Euphoria e The White Lotus, veste o hábito de uma jovem irmã virginal que engravida misteriosamente – Imagem: Diamonds Films
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Algumas estrelas de cinema desaparecem por detrás de seus papéis. Mas esse não é, definitivamente, o caso de Sydney Sweeney. A presença familiar e a aura pop da atriz das séries Euphoria (2019) e The White Lotus (2021) e do longa-metragem Todos Menos Você (2023) é tão grande que ameaça atropelar seus personagens.

Tampouco ajuda para a desconstrução de sua marca cultural o fato de Sydney nunca – ou muito raramente – mudar seu sotaque típico da geração millennial ou sua maneira cativante e tímida de agir. Isso tudo praticamente desfaz a ilusão da ficção e convida à fusão entre sua imagem pública e as figuras que ela interpreta.

Em alguns filmes, isso poderia ser uma desvantagem. Mas Imaculada, um pequeno retorno divertido e desagradável a O Bebê de Rosemary (1968) e a filmes de crime como Suspiria – a Dança do Medo (2018) se torna ainda melhor pelo significado dessa presença.

Sidney, que por muito tempo tentou esquivar-se de um papel no estilo “rainha do grito” – termo utilizado para designar atrizes associadas ao terror – veste agora o hábito de uma jovem freira virginal, a irmã Cecilia. Após engravidar misteriosamente, ela é aprisionada no convento por irmãs raivosas que passam a acreditar que ela seja portadora da segunda vinda de Jesus Cristo.

O filme, em cartaz nos cinemas brasileiros a partir da quinta-feira 30, é, essencialmente, uma história sobre forças nefastas que se sentem detentoras do direito de dar, ao corpo de uma jovem, o significado que quiserem. É um papel que Sydney, com toda a atenção que atrai por suas medidas sexy clássicas, pode conscientemente exercer.

Seu papel estelar na festa traumática que é Euphoria é um comentário sobre a objetificação que, ao mesmo tempo, contribui para sua própria objetificação – a atriz, ao que se sabe, teve de se colocar contra algumas das várias cenas de nudez que Sam Levinson, o criador da série, escreveu para ela.

Em março, Sydney esteve no programa de TV Saturday Night Live e zombou de como os olhos que a observam tendem a se dirigir para o “sul” numa peça em que interpretou uma garçonete da rede ­Hooters que se destaca no trabalho por seu físico.

Um colunista de direita reivindicou recentemente o corpo da atriz, escrevendo no jornal canadense conservador ­National Post que sua gostosura era a morte da “consciência desperta”. Aparentemente, os esquerdistas instintivos, que democratizam os padrões de beleza, não suportam nada maior que um sutiã médio.

Com tudo isso em mente, a luta de Sydney Sweeney pela autonomia do corpo contra os fanáticos religiosos em Imaculada transcende a tela de uma forma que a maioria dos filmes B como esse só poderia almejar.

O modo como a freira Cecilia se opõe ao patriarcado parece fundir atriz e personagem em uma coisa só

Conhecemos a irmã Cecilia de Sidney quando ela viaja para a Itália. Dois agentes de fronteira são os primeiros a observá-la de cima abaixo. Eles fazem comentários, em italiano, sobre o desperdício que é aquela jovem dedicar seu corpo a Cristo. Cecilia, embora ainda não tenha aprendido o idioma, entende a intenção deles. Seu comportamento piedoso e reservado parece ser sua resposta.

Cecilia está se mudando para um convento na zona rural da Itália, que serve como lar de idosos e cuidados paliativos para freiras mais velhas, em busca de seu propósito espiritual. A morte está no ar antes mesmo de Imaculada encontrar as sombras assustadoras que se agitam na noite e começar a lidar com as freiras em cenas violentas que o diretor Michael Mohan apresenta com uma intensidade de revirar o estômago.

Imaculada não está acima dos prazeres mais baixos que um filme de exploração sexual de freiras pode oferecer. Trabalhando a partir de um roteiro de Andrew Lobel, Mohan deleita-se com simples sustos, desfigurações corporais e os mais antigos clichês do gênero.

Esses momentos podem ser tanto risíveis quanto revigorantes. Não há aqui a seriedade opressiva da tendência ao “horror elevado”. Há, ao invés disso, o abandono descontrolado a um festival de baixaria. Mohan parece se sentir à vontade e feliz em ficar à sombra de ­suas ­influências, altas e baixas – de ­Suspiria a Mulheres Perfeitas (2004).

Mas a direção de Mohan também traz lembranças dos trabalhos de Jaume ­Collet-Serra – como A Casa de Cera (2005) e Águas Rasas (2016) –, outro habilidoso artesão do gênero cujas escolhas visuais parecem mais intencionais que mecânicas.

Em Imaculada, Mohan tende a seguir tomadas graciosas com closes horríveis, como quando uma freira mergulha do telhado do convento e nos inclinamos para ver mais de perto seu rosto mutilado contra a calçada.

Sydney, produtora de Imaculada,

recrutou Mohan, que a havia dirigido em Observadores (2021), seu retorno bobo, mas eficaz, a Janela Indiscreta (1954) e aos thrillers eróticos dos anos 1990, como Instinto Selvagem (1992). No filme, a atriz dava vida a uma mulher não apenas objetificada, mas cujo olhar amendoado podia, ele próprio, originar a objetificação. Mohan parece ser fixado no que ­Sidney é capaz fazer com os olhos – e é muito.

Lembram-se do olhar sonolento e cortante dela em The White Lotus? Observe-os em Imaculada: como eles se arregalam de medo ou choram na derrota; e como, quando irmã Cecilia se opõe ao patriarcado, na parte “meu corpo, minhas regras” dessa jornada impressionante, seus olhos endurecem em um desafio que, de tão apaixonado, parece pessoal. •


Tradução: Luis Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A autonomia do corpo’

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