Cultura
A arte nas frestas do cotidiano
Um conjunto de obras recentemente lançadas procura desvendar os mistérios biográficos de artistas dos séculos passados
Existe uma estabelecida vertente da literatura que se ocupa da própria literatura. Dentro desse nicho encontramos uma subdivisão: aquela que se dedica à investigação dos mistérios biográficos, à análise criativa das múltiplas relações possíveis entre arte e vida. Quem não tem curiosidade a respeito dos recessos cotidianos de seus artistas favoritos?
Elin Cullhead, escritora sueca, acaba de ter publicado no Brasil seu romance Euforia, dedicado a Sylvia Plath. No livro, a autora busca dar conta do último ano de vida de Plath – as dificuldades de seu casamento com Ted Hughes, os gozos e agruras da maternidade, o percurso tortuoso de realização dos poemas de Ariel e, por fim, seu suicídio aos 30 anos, em 11 de fevereiro de 1963.
Os capítulos curtos e as cenas repletas de diálogos dão dinamismo a este intenso exercício de resgate e evocação. O embate com a amante do marido, nos domínios de Plath, é particularmente pungente: “Ted mostrou meu escritório para Assia. Ela circulou à vontade e mexeu nas minhas coisas, lançando tentáculos longos e finos, e eu perdi a maneira como normalmente me manifestava”. O uso da primeira pessoa, fazendo Plath falar “pela própria voz”, é bastante eficiente.

Mais perto de nós, outro livro recente realiza um movimento semelhante: A Guerra Invisível de Oswald de Andrade, de Mariano Marovatto. Não se trata de uma ficção exaltada como a de Elin Cullhead, mas de um ensaio narrativo que investiga os meandros das relações de Oswald de Andrade no ano de 1939, quando retorna de uma viagem pela Europa, animado para escrever um livro – A Guerra Invisível – jamais concretizado.
Marovatto fala da “insubmissa trajetória” do autor que escolhe evocar e resgatar e salienta que 1939 é um “ponto de inflexão” no percurso de Oswald. Nesse ano, ele vive sua “aventura carioca” como um “antagonista de Mário de Andrade”. Outro ponto de destaque é a ênfase posta na “autoficcionalização” que Oswald faz de sua biografia, forçando o ensaísta ao cotejamento com a “memória de outros nomes”.
Por fim, é preciso apontar a muito bem-vinda aparição de Isabelle Eberhardt, estrela de primeira grandeza na arte da viagem, resgatada por Paula Carvalho em Direito à Vagabundagem: As Viagens de Isabelle Eberhardt. De família russa radicada na Suíça, Eberhardt nasceu em 1877 e, aos 20 anos, mudou-se para a Argélia. No país do Norte da África, vestia-se como homem e converteu-se ao Islã, adotando o pseudônimo Mahmoud Saadi. Eberhardt deixou registrado nos artigos que publicava na imprensa francesa sua visão de mundo extremamente peculiar, sua ousadia e sua coragem na movimentação em ziguezague entre pertencimentos e identidades.
Quando morre Eberhardt, Oswald é um adolescente de 14 anos. Quando morre Oswald, Plath tem 22 anos e publica seus poemas na revista Harper’s. Esses personagens reais não se cruzam, mas, certamente, estão em diálogo.
Embora sejam três vidas e três livros absolutamente diferentes, há, em cada um deles, uma questão que se repete: o passado nunca acaba de “passar”. O passado está, ao contrário, repleto de artistas, intelectuais, viajantes, pessoas, enfim, cujas vidas despertam nossa curiosidade, nossa nostalgia e reforçam em nós a certeza de que o presente não basta. •
Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.
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