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A arte feita sem mãos

Anunciada nas feiras do século XIX como “a maravilha sem membros”, Sarah Biffin começa a conquistar o seu lugar na história

A arte feita sem mãos
A arte feita sem mãos
Suas obras estarão expostas na Philip Mould & Company, em Londres - Imagem: Philip Mold & Co e SW Heritage Trust
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Ela nasceu sem braços e sem pernas em 1784, filha de agricultores e, como media apenas 90 centímetros de altura quando adulta, foi exibida como atração em feiras itinerantes. Anunciada como A Maravilha sem Membros, Sarah Biffin pintava, escrevia e costurava com a boca e o ombro. Fazia isso ao lado de lutadores, animais selvagens e outras “curiosidades” secundárias que ­atraíam espectadores pagantes.

Mas Sarah superou as adversidades, encontrando reconhecimento por seu talento excepcional como pintora numa época em que a arte de mulheres e pessoas com deficiência era, geralmente, ignorada.

Finalmente, uma grande exposição vai celebrá-la como uma mulher inspiradora, que não apenas desafiou as atitudes em relação à deficiência como pintou miniaturas e aquarelas de uma beleza tão requintada que atraiu, como um de seus mecenas, a rainha Vitória.

A exposição, que reúne obras emprestadas de instituições públicas, acontecerá a partir de novembro na galeria londrina de Philip Mould, apresentador da série Fake or Fortune?, na BBC One.

“Como artista mulher com deficiência e da classe trabalhadora, suas obras – muitas orgulhosamente assinadas ‘sem mãos’ – são uma prova de seu talento e determinação ao longo da vida”, diz Mould. “Mas, apesar da produção artística prolífica ser citada em inúmeras memórias, cartas e obras literárias de figuras importantes de sua época, a vida notável de ­Biffin tem sido, até aqui, quase sempre ignorada pelos historiadores da arte.”

Nascida com a condição congênita focomelia, Biffin foi descrita na certidão de batismo como “nascida sem braços e pernas”. Crescendo na zona rural de ­Somerset, no sudoeste da Inglaterra, ela aprendeu sozinha a escrever, pintar, costurar e usar tesouras. Sua determinação era tão extraordinária que, quando sua família ia à igreja, ela se recusava a ser carregada, e rolava pelo corredor até o banco.

Seu pai trabalhava como lavrador, sapateiro e tapeceiro. Biffin conseguia complementar a renda familiar com seus ganhos anuais de 5 libras, pelas participações no parque de diversões de Emmanuel Dukes.

Um anúncio proclamava sua “grande genialidade” no desenho e na pintura com a boca, acrescentando: “O leitor pode facilmente pensar que é impossível que ela consiga fazer o que está inserido neste cartaz, mas, se não puder, o Condutor perderá mil guinéus”.

A requintada beleza das miniaturas e aquarelas pintadas por ela foi merecedora da atenção da rainha Vitória e de Dickens

Alguns espectadores recebiam uma amostra de sua escrita incluída no ­custo de alguns ingressos. Outros pagavam três guinéus por seus retratos em miniatura. Um jornal relatou: “Tão requintado é o toque daquela senhora, que ela pode, facilmente, dar um nó em um fio de cabelo com a língua”.

Sua sorte mudou depois que o conde de Morton sentou-se para ser retratado na Feira de São Bartolomeu, em Londres, e ficou tão impressionado pelo talento de Biffin que pagou seus estudos com o notável pintor William Marshall Craig. A partir de 1816, ela se estabeleceu como artista independente e recebeu encomendas da nobreza e da realeza.

Tal era sua fama que Charles Dickens referiu-se a ela em vários romances, entre eles, A Velha Loja de Curiosidades, no qual escreveu sobre “a pequena senhora sem pernas ou braços”.

Em meio ao relativo sucesso, como se ela não tivesse sofrido o suficiente, seu coração foi partido por um homem que se casou com ela apenas para aplicar um golpe. Ele desapareceu com seu dinheiro, deixando-a com uma pequena mesada anual. Ela morreu em 1850, aos 66 anos.

O ressurgimento do interesse por ­Biffin nos últimos anos reflete-se no aumento dos preços de suas obras. Em 2019, uma de suas miniaturas de autorretrato foi vendida por 137.500 libras (o equivalente a 825 mil reais), quantia notável para uma artista pouco conhecida.

A exposição Without Hands: The Art of Sarah Biffin (Sem Mãos: A Arte de Sarah Biffin) será apresentada na Pall Mall, rua elegante no centro de Londres, pela ­Philip Mould & Company, especializada em ­arte britânica há mais de 35 anos.

A mostra incluirá retratos e autorretratos encomendados a Biffin. A maioria dos autorretratos ela pintou com um pincel costurado na manga do vestido, que era manuseado com o ombro e a boca.

Outras salas incluem naturezas-mortas, como seu Estudo de Penas, executado com suprema delicadeza e realismo, e cartas manuscritas que revelam humor.

Mould descreveu o talento de Biffin como sendo notável e merecedor de um lugar nos livros de história da arte. Como sua produção foi prolífica, ele acredita que existam mais trabalhos dela que ainda não foram descobertos. Podem, inclusive, ter sido atribuídos erroneamente a outra pessoa, uma vez que ela assinou alguns deles com o nome do marido.

A curadora da exposição é Alison ­Lapper, que nasceu 180 anos depois com a mesma condição de Sarah Biffin e inspirou o retrato escultórico de Marc Quinn, colocado no quarto pedestal da Trafalgar Square. “Estou completamente fascinada por Sarah Biffin e nossas semelhanças”, disse Alison. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A arte feita sem mãos”

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