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A armadilha de se retratar Napoleão

Ridley Scott sucumbe à tentação de transformar o “pequeno cabo” da Córsega em filme, enquanto, na França, sua figura é cada vez mais indigesta

A armadilha de se retratar Napoleão
A armadilha de se retratar Napoleão
Épico. Napoleão, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 23, traz o ator Joaquin Phoenix no papel do imperador e Black Sabbath e Radiohead na trilha sonora – Imagem: Columbia/Sony/Apple Original Films
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Napoleão Bonaparte é, provavelmente, o francês mais famoso de todos os tempos, e perde apenas para Jesus como a figura mais filmada da história do cinema. Figura complexa, cuja aura, monstruosidade e genialidade se encaixam à perfeição no grande cinema, Napoleão tem um apelo irresistível para cineasta sério.

Não é, portanto, de admirar que ­Ridley Scott, que está com 85 anos e cuja prolífica carreira inclui filmes grandiosos e arrebatadores, tenha sucumbido à atração do “pequeno cabo” da Córsega.

Napoleão chega aos cinemas na quinta-feira 23, trazendo Joaquin Phoenix no papel principal e uma trilha sonora que inclui Black Sabbath – no clássico canto fúnebre War Pigs – e um cover lento do Radiohead – The National Anthem, outro canto fúnebre.

O longa-metragem conta a vida de Napoleão por meio de seu tortuoso caso de amor com a esposa, Joséphine – marcado por ciúmes e obsessões – e de seu plano magistral para conquistar a Europa. O filme é um épico, nos moldes do Gladiador (2000), do próprio Scott, com algumas das emocionantes cenas de batalha, que são sua marca registrada.

Ao fazer um filme sobre Napoleão, Scott está, obviamente, fazendo sua própria aposta na grandeza. Ele se coloca numa linhagem que remonta quase à invenção do cinema, quando, em 1897, ­Louis Lumière produziu um curta-metragem que retratava Napoleão discutindo com o papa Pio VII – baseado no encontro ­real deles em 1804, quando Napoleão, num acesso de raiva, tentou convencer o pontífice a transferir o trono papal para Paris.

Seguiu-se Napoléon (1927), de Abel Gance, um estudo de personagem de 330 minutos sobre poder, glória e arrogância, com o rosto pálido de Albert Dieudonné como o imperador. Outros filmes poderosos sobre Napoleão foram feitos pelo franco-russo Sacha Guitry e pelo ucraniano-russo Sergei Bondarchuk.

Os cineastas de língua inglesa, no entanto, muitas vezes tropeçaram ao filmá-lo. Charlie Chaplin, Peter Jackson e Stanley Kubrick não conseguiram concluir seus filmes, derrotados pela enormidade da pesquisa, pelas contradições da história ou, como no caso da iniciativa de Kubrick − chamada de “o maior filme jamais feito” – porque os épicos históricos tinham saído de moda em Hollywood.

Os cineastas de língua inglesa sempre tenderam à caricatura, ora de um vilão estrangeiro, ora de um tirano assassino e belicista

Há outras dificuldades que surgem quando se retrata Napoleão fora da França. Mais notavelmente, no mundo anglófono, a visão predominante tem sido a de uma caricatura vil: ou ele é um vilão estrangeiro empenhado em invadir a Grã-Bretanha ou, mais sinistramente, um tirano assassino e belicista, um protótipo de Adolf Hitler.

Não é assim que Napoleão é visto na França. Para a maioria dos franceses, Napoleão é parte integrante do seu passado e constitutivo de quem eles são hoje. Isso não quer dizer que ele seja venerado universalmente. E não há nada de novo nisso.

Grande parte da literatura do século XIX, de Balzac a Stendhal, de Victor Hugo a Edgar Quinet, é um longo debate sobre se Napoleão foi o maior estadista de todos os tempos, que trouxe ordem ao caos da França pós-revolucionária e a levou ao seu destino como a “Grande Nação”, ou se seu egoísmo obstinado só trouxe gastos e destruição.

Os debates mais recentes se concentraram no legado e no impacto de suas aventuras coloniais, mais notavelmente a campanha que liderou entre 1798 e 1801 para conquistar partes da Síria e do Egito, tomando-as do Império Otomano.

A campanha acabou por falhar do ponto de vista militar, e o exército francês foi forçado a recuar. Mas a invasão também captou a imaginação dos políticos franceses, que começaram a ver os territórios do Oriente Médio não só como um lugar propício para a pilhagem, mas também como uma forma de ampliar os valores do Iluminismo.

Isto acabou por ser codificado na “missão civilizadora” francesa, baseada na ideia de que o destino histórico do país era exportar os valores universais de liberdade, igualdade e fraternidade. Sob essa rubrica, a França colonizou, pela força, partes significativas do mundo árabe, nomeadamente a Argélia, a Tunísia e o Marrocos.

Valores da República. O cineasta Abel Gance fez um filme de 330 minutos sobre Napolão. Macron (à esq.), na França contemporânea, fica em cima do muro – Imagem: SGL/Robert A. Harris e Philippe Servent/Presidência da França

Existe hoje um debate aberto na França sobre a missão civilizadora: se era uma ambição nobre ou se é motivo de vergonha. O que parece indiscutível é que a ­reputação de Napoleão não é o que já foi. Isso ficou evidente no caráter melancólico do bicentenário de sua morte, em 2021.

Embora a Fondation Napoléon, um órgão público, tenha anunciado “O Ano Napoleão”, muitas instituições, incluindo escolas, bibliotecas e museus, não tiveram ânimo para homenagear o pai do colonialismo francês. Houve ainda mais controvérsia em torno do fato de Napoleão, em 1802, ter restaurado a escravatura, que tinha sido abolida após a Revolução Francesa.

Na França do século XXI, lembrar Napoleão é um exercício difícil e delicado. Foi por isso que Emmanuel Macron foi tão cauteloso na escolha das palavras ao discursar sobre Napoleão no Institut de France, antes de depositar uma coroa de flores no túmulo do imperador. Macron reconheceu que Napoleão “faz parte de nós”, mas ponderou: “Não estamos envolvidos numa celebração exaltada, mas numa comemoração exaltada”.

O presidente disse ainda que, embora a restauração da escravatura tenha sido “uma falha, uma traição ao espírito do Iluminismo”, ele não poderia renegar as conquistas de Napoleão: “Napoleão compreendeu que tinha de continuar a procurar a unidade e a grandeza do país. Ele alcançou isso fazendo as pazes com as grandes religiões, com a arte, e nunca renunciou à ideia de mérito”.

Macron sabe muito bem que a memória de Napoleão alimenta de forma direta as tensões contemporâneas na França. Em abril de 2021, pouco depois da “exaltada comemoração” de Napoleão por ­Macron, a revista de centro-direita Causeur publicou uma edição especial, na qual atacou tanto o presidente francês quanto os detratores de Napoleão.

A editora Elisabeth Lévy argumentou que “atacar Napoleão hoje é uma forma de suicídio coletivo”. O que ela mais admira, como muitos fãs de Napoleão, à esquerda ou à direita, é seu universalismo, o que significa sua crença de que os valores da República Francesa eram supremos e que essa era a única forma de construir um ­país e, em última análise, uma civilização.

É, porém, aqui que reside o verdadeiro conflito na França do século XXI: entre os que ainda acreditam nos valores universais da República e os que os consideram desatualizados e inadequados para um ­país moderno e multicultural. Nunca ficou clara a posição de Macron. Nos últimos anos, a França viu a violência política culminar em ataques às instituições da República, em uma mensagem clara de raiva e descontentamento com seus valores.

Perante isso, Macron sempre defendeu a unidade nacional, opondo-se à corrosão dessa unidade pelas políticas identitárias. Ao mesmo tempo, ele é um globalista que olha além das fronteiras locais e vê um mundo complexo, onde as identidades raciais, religiosas e políticas nem sempre podem ser acomodadas por uma abordagem única da democracia.

Por todas essas razões, pode muito bem ser que Macron esteja mais interessado do que a maioria das pessoas nesse novo e badalado retrato cinematográfico de Napoleão. O fantasma do imperador ainda é uma presença no país que ele governa. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
*Andrew Hussey é o autor de The French Intifada, the Long War Between France and its Arabs (A Intifada Francesa, a Longa Guerra Entre a França e Seus Árabes).

Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.

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