Cultura
A anorexia e seus espelhos
O corpo esquálido surge, em Êxtase, como um reflexo do excesso de controle e da repressão social
Êxtase, hoje, é um termo que dá nome a uma droga que intensifica sensorialidades. A palavra, no passado, descrevia certos estados mentais e físicos que alguns santos alcançavam por meio da ascese. No documentário de Moara Passoni, a experiência não é química nem mística. É um estado físico associado à anorexia.
A diretora de Êxtase, em cartaz nos cinemas desde a quinta-feira 1º de dezembro, adota um caminho sinuoso para abordar um tema de representação difícil. Em vez de coletar exemplos, registrar entrevistas e exibir corpos adoecidos pelo distúrbio, Moara faz uma escolha mais ousada.
As imagens de Clara, uma adolescente anoréxica, nos espaços da escola, praticando atividades físicas e tendo aulas de balé revelam uma magreza que a mente já não reconhece, enquanto persegue uma ideia distorcida de beleza. No lugar da aparente objetividade do documentário, a realizadora escolhe a subjetividade para dar acesso ao que o espectador pode ver, mas não sente.
O relato, feito por meio de uma voz em primeira pessoa, descreve desejos e sentimentos. O uso bastante eficaz de imagens subjetivas traduz as percepções e sugere sensações. Imagens sobrepostas a estas mostram como ela vê os outros corpos e os alimentos. A estratégia é muito produtiva, pois oferece, em primeiro lugar, uma projeção, estimulando a identificação. Além disso, expõe a dinâmica patológica do distúrbio ao representar a interioridade submetida a uma forte repressão, a uma disciplina que foge do controle.
A ideia forte permite a Êxtase desafiar as convenções do documentário jornalístico e o que esse formato alcança. Assim, o filme não fica restrito às abordagens psicológicas e psiquiátricas de sempre. O ângulo da repressão abre mais caminhos, que a diretora explora com astúcia. Desde as primeiras imagens, Êxtase assume a ambição de amplificar a abordagem, mostrando o fio nem sempre evidente que reúne subjetividade e coletividade.
O controle que Clara impõe ao seu organismo é mostrado em paralelo, intercalado com imagens da repressão política sobre o corpo social.
As linhas finas, quase abstratas, do físico descarnado de Clara se cruzam, num exercício escolar, com o traçado do projeto piloto e com a arquitetura de Brasília, ícone da nossa modernidade conservadora.
Assim, a percepção delirante que a protagonista tem de seu corpo conecta-se com outra, não menos confusa, que ainda temos da história do País. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A anorexia e seus espelhos “
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