Cultura

A alegria de ler

A primeira manhã em Paris, dificilmente a gente esquece

Alegria...
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Nove e pouco da manhã e lá fora ainda fazia noite. Os carros circulavam pela avenida, deixando um rastro luminoso no asfalto liso e impecável, reflexo da chuva fina que caia sem parar na cidade luz.

A primeira manhã em Paris, naquele inverno que prometia ser longo e rigoroso, começou assim. Vesti minha calça vermelha, meu casaco de general, meias de lã, tamancos suecos e sai caminhando.

Virei a Rue Paillet, desci a Soufflot, peguei o Boulevard Saint Michel e fui descendo. Eu e minha amiga, que me recebeu com flores e champagne na Gare de Austerlitz, no dia anterior.

O destino era o número 40 da Rue Saint Séverin, no coração do Quartier Latin. Em poucos minutos, já estávamos pertinho. Fizemos apenas um pit stop no café Au Saint Séverin, para tomar um chocolate quente, já que os pés e as pontas dos dedos das mãos formigavam de frio.

Refeitos, chegamos ao número 40 e descemos as escadas. Eram mais ou menos uns trinta degraus de uma escada apertada e muito vertical. Fomos devagar, segurando no corrimão, até chegar ao porão.

As paredes brancas estavam um pouco encardidas e repletas de cartazes. Num cantinho, uma cortiça recebia bilhetinhos alfinetados, de estudantes procurando trabalho, livros esgotados, carona – nem que fosse num 2CV – para o próximo verão na Costa Brava.

Minha amiga ia traduzindo  tudo pra mim, pobre brasileiro que sabia dizer apenas merci beaucoup e olhe lá. O porão não tinha janela, era apertado, úmido e logo cedo já estava transbordando de gente. Barbados, bolsas a tiracolo, casacos de general verde musgo como o meu.

No centro, uma mesa quadrada ocupava quase todo o ambiente. Estava tomada de pilhas de jornais latino-americanos, todos tabloides. Olhava um a um e, apesar do meu espanhol ainda ruim,  conseguia ir traduzindo: Avante, Luta Operária, Venceremos, Foice, Marcha e Vitória. A América do Sul vivia sombrias ditaduras  e aqueles jornaizinhos quase clandestinos, a mais de dez mil quilômetros de distância, cumpriam o seu papel.

Papel muitas vezes ruim e amarelado. Alguns eram impressos em mimeógrafo e deixavam um leve odor de álcool no ar. Ali, no meio de tantas ideologias, sonhos e revoluções, encontrei o jornal Opinião, em bom português.

Na capa, o rosto de Ney Matogrosso desenhado por Elifas Andreato e uma manchete que dizia: “A explosão musical dos Secos e Molhados”. Era o primeiro Opinião que eu pegava e sentia o cheiro, desde que havia deixado o meu país.

Folheei página por página, da 1 até a 20. Foi ali, de pé naquele porão, que li na página 2, o primeiro perfil do general que seria o presidente do Brasil pelos próximos quatro anos. O desenho de Ernesto Geisel era de Chico Caruso.

Numa longa entrevista, Reza Pahlevi, o xá do Irã, falava sobre o futuro do mundo. Perguntado se imaginava a semana com apenas três dias de trabalho, o xá respondeu: “Deverá acontecer, com a automatização da indústria e o crescimento da população”.

Estávamos em janeiro de 1974.

O Opinião registrava a morte de João da Bahiana, o compositor de “Passarinho bateu asas” e “Patrão prenda o seu gado” e também do mexicano Siqueiros, aquele que pintou “A Nova Democracia” e ”Ecos do Pranto”.

O sucesso no teatro, lá no meu país que havia ficado pra trás, era “Apareceu a Margarida”, com Marília Pera.

Folheei todos aqueles jornais argentinos, uruguaios, chilenos, peruanos, colombianos e bolivianos, antes de subir os degraus com o Opinião na mão. Paguei por ele algumas moedas de francos, acho que cinco, no caixa que ficava perto da porta da livraria La Joie de Lire, que minha amiga, caminhando de volta pra casa, traduziu pra mim, palavra por palavra: A Alegria de Ler.

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