Cultura
A ágora do tempo presente
O Leão de Ouro no Festival de Teatro da Bienal de Veneza coroa os 30 anos de trajetória da diretora brasileira Christiane Jatahy, radicada na Europa


Mbali, uma criança negra, caminha em direção à câmera. Seus olhos parecem atravessar a tela grande no Teatro alle Tese, na abertura do espetáculo O Agora que Demora, nos projetando em outras mitologias, pessoais e coletivas. O público da 50ª edição do Festival de Teatro da Bienal de Veneza ainda não sabe, mas está prestes a embarcar numa máquina do tempo.
Esse mergulho é capitaneado pela diretora brasileira Christiane Jatahy que, feito Caronte, o barqueiro do inferno, nos pede algo para realizar a travessia. E o que ela nos pede não é uma moeda para os mortos, mas um ato de fé, uma aposta na reinvenção. “Se meu trabalho tem um objetivo, é o de transformar”, disse ela, ao receber, no domingo 26, o Leão de Ouro da Bienal de Veneza.
Jatahy é a primeira artista brasileira a receber o prêmio máximo do Festival de Teatro da Bienal de Veneza – e um dos mais importantes prêmios do teatro mundial – e a segunda mulher. A primeira foi a diretora francesa Ariane Mnouchkine (2007). O Leão coroa uma trajetória de quase 30 anos e cerca de 20 peças que viajaram o mundo e na qual teatro e política se mostram indissociáveis.
Como Telêmaco na Odisseia de Homero, a pequena Mbali perdeu o pai para a guerra. Pouco a pouco, a alquimia narrativa de Jatahy dinamita para a plateia as fronteiras entre a mitologia grega e as guerras contemporâneas, o cinema e o teatro, e entre o que foi, o que é, e, sobretudo, o que “poderemos ser juntos”.
É na terceira margem do rio – a de outras temporalidades e possibilidades – que opera o teatro da diretora carioca, nascida em 1968, e hoje vivendo na Europa. Em O Agora que Demora, ela mesma sobe ao palco, quebrando qualquer ilusão teatral naturalista, para, em primeira pessoa, contar a própria história, a de uma mulher que perdeu o pai para a ditadura militar e cujo avô desapareceu em um acidente de avião na Amazônia.
É também em primeira pessoa que seus atores-performers dão testemunhos sobre suas travessias pessoais, no Brasil, no Líbano, na África do Sul, na Palestina, configurando um mosaico bem orquestrado de “Ulisses contemporâneos”, em transe e em trânsito, entre guerras, exílios e descobrimentos.
“O teatro só pode acontecer no tempo presente. A vida é tão enorme que não cabe num frame”, diz Jatahy, que é formada em teatro e jornalismo e tem um mestrado em Artes e Filosofia. Trata-se de uma trajetória tão poliforme e híbrida quanto seus trabalhos.
Há quase três décadas, Jatahy e a Cia Vértice estilhaçam as fronteiras entre linguagens, geografias, imaginários e hierarquias, como aquelas que separam palco e plateia. Mas foi a partir de Julia (ganhadora do Prêmio Shell, em 2012), adaptação de Senhorita Julia, de Strindberg, que o trabalho da brasileira começou a chamar a atenção de programadores internacionais.
“Se meu trabalho tem um objetivo é o de transformar”, disse ela, durante a entrega do prêmio
“Foi durante um mostra de teatro paralela ao Panorama da Dança (no Rio de Janeiro)”, lembra Jatahy, sublinhando a “importância de políticas culturais para se ter uma vitrine internacional.” A diretora saudou a importância do Leão de Ouro como uma consagração da trajetória.
“No Brasil, temos a sensação de recomeçar a cada trabalho”, suspira. Fechando a Trilogia dos Horrores, iniciada com Entre Chien et Loup (Entre o Cão e o Lobo, 2021), Jatahy acaba de estrear em Viena Depois do Silêncio, peça que, nas palavras dela, fala essencialmente sobre o colonialismo e é inspirado no romance Torto Arado, de Itamar Vieira Jr. Sobre o trabalho seguinte – uma ópera – a diretora ainda faz suspense.
Gianni Forte, que dirige, ao lado de Stefano Ricci, o Festival de Teatro da Bienal de Veneza, diz que a palavra “ROT” – “vermelho” em alemão, título desta edição – traduz o som de uma “luta ética”, um “combate que travaremos juntos, coletivamente”. “Os artistas conduzirão os espectadores pela selva oscura, para citar Dante, um lugar que não é apenas hostil, mas que também pode nos trazer mudanças e encantamentos”, diz, antes de justificar o Leão. “Escolhemos Jatahy porque ela é um dos artistas mais originais na utilização de uma linguagem entre a reflexão política e a radicalidade íntima da poesia”, diz.
“Christiane Jatahy e (o artista trans finlandês-egípcio) Samira Elagoz, premiado com o Leão de Prata, são dois lados da mesma moeda, no sentido de que fazem pesquisas que extrapolam códigos binários, entre a realidade e uma dimensão onírica, filosófica, que nos reconecta conosco e nos autoriza a falar sobre nós mesmos”, completa Ricci. “Christiane fala sobre si mesma enquanto mulher em um país humilhado pela ditadura, utilizando o dispositivo de uma câmera que olha para nós. É como se, por meio dessa tela, ela nos levasse a atravessar o espelho, como uma Alice no País das Maravilhas.”
Em uma das cenas de O Agora que Demora, a câmera se aproxima de um “Ulisses” árabe, refugiado, que usa uma camiseta vermelha com os dizeres “Palm Springs”. A paisagem, no entanto, não é a da Califórnia, mas a do Vale do Bekaa, região agrícola libanesa, quase na fronteira com a Síria. O ator, em close, lê Homero: “Meus país acabou. Quando digo acabou, é isso. Não sobrou nada”.
As palavras ecoam na sala, sem que saibamos ao certo a que “país” ele se refere: Ítaca? Síria? Brasil? “É como um estilingue”, diz Jatahy. “Eu puxo a pedra até esgarçar o fio da realidade e a solto para rasgar a ficção.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A ágora do tempo presente”
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