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A ágora do tempo presente

O Leão de Ouro no Festival de Teatro da Bienal de Veneza coroa os 30 anos de trajetória da diretora brasileira Christiane Jatahy, radicada na Europa

A ágora do tempo presente
A ágora do tempo presente
Forma híbrida. Em O Agora que Demora, apresentada no teatro Alle Tese para marcar a homenagem, a diretora entra em cena para contar sua própria história. A peça se desenrola, simultaneamente, na tela e no palco - Imagem: Andrea Avezzu/Bienal de Veneza
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Mbali, uma criança negra, caminha em direção à câmera. Seus olhos parecem atravessar a tela grande no Teatro alle Tese, na abertura do espetáculo O Agora que Demora, nos projetando em outras mitologias, pessoais e coletivas. O público da 50ª edição do Festival de Teatro da Bienal de Veneza ainda não sabe, mas está prestes a embarcar numa máquina do tempo.

Esse mergulho é capitaneado pela diretora brasileira Christiane Jatahy que, feito Caronte, o barqueiro do inferno, nos pede algo para realizar a travessia. E o que ela nos pede não é uma moeda para os mortos, mas um ato de fé, uma aposta na reinvenção. “Se meu trabalho tem um objetivo, é o de transformar”, disse ela, ao receber, no domingo 26, o Leão de Ouro da Bienal de Veneza.

Jatahy é a primeira artista brasileira a receber o prêmio máximo do Festival de Teatro da Bienal de Veneza – e um dos mais importantes prêmios do teatro mundial – e a segunda mulher. A primeira foi a diretora francesa Ariane ­Mnouchkine (2007). O Leão coroa uma trajetória de quase 30 anos e cerca de 20 peças que viajaram o mundo e na qual teatro e política se mostram indissociáveis.

Como Telêmaco na Odisseia de ­Homero, a pequena Mbali perdeu o pai para a guerra. Pouco a pouco, a alquimia narrativa de Jatahy dinamita para a plateia as fronteiras entre a mitologia grega e as guerras contemporâneas, o cinema e o teatro, e entre o que foi, o que é, e, sobretudo, o que “poderemos ser juntos”.

É na terceira margem do rio – a de outras temporalidades e possibilidades – que opera o teatro da diretora carioca, nascida em 1968, e hoje vivendo na Europa. Em O Agora que Demora, ela mesma sobe ao palco, quebrando qualquer ilusão teatral naturalista, para, em primeira pessoa, contar a própria história, a de uma mulher que perdeu o pai para a ditadura militar e cujo avô desapareceu em um acidente de avião na Amazônia.

É também em primeira pessoa que seus atores-performers dão testemunhos sobre suas travessias pessoais, no Brasil, no Líbano, na África do Sul, na Palestina, configurando um mosaico bem orquestrado de “Ulisses contemporâneos”, em transe e em trânsito, entre guerras, exílios e descobrimentos.

“O teatro só pode acontecer no tempo presente. A vida é tão enorme que não cabe num frame”, diz Jatahy, que é formada em teatro e jornalismo e tem um mestrado em Artes e Filosofia. Trata-se de uma trajetória tão poliforme e híbrida quanto seus trabalhos.

Há quase três décadas, Jatahy e a Cia Vértice estilhaçam as fronteiras entre linguagens, geografias, imaginários e hierarquias, como aquelas que separam palco e plateia. Mas foi a partir de Julia (ganhadora do Prêmio Shell, em 2012), adaptação de Senhorita Julia, de ­Strindberg, que o trabalho da brasileira começou a chamar a atenção de programadores internacionais.

“Se meu trabalho tem um objetivo é o de transformar”, disse ela, durante a entrega do prêmio

“Foi durante um mostra de teatro paralela ao Panorama da Dança (no Rio de ­Janeiro)”, lembra Jatahy, sublinhando a “importância de políticas culturais para se ter uma vitrine internacional.” A diretora saudou a importância do Leão de ­Ouro como uma consagração da trajetória.

“No Brasil, temos a sensação de recomeçar a cada trabalho”, suspira. Fechando a Trilogia dos Horrores, iniciada com Entre Chien et Loup (Entre o Cão e o ­Lobo, 2021), Jatahy acaba de estrear em Viena Depois do Silêncio, peça que, nas palavras dela, fala essencialmente sobre o colonialismo e é inspirado no romance ­Torto ­Arado, de Itamar Vieira Jr. Sobre o trabalho seguinte – uma ópera – a diretora ainda faz suspense.

Gianni Forte, que dirige, ao lado de ­Stefano Ricci, o Festival de Teatro da Bienal de Veneza, diz que a palavra “ROT” – “vermelho” em alemão, título desta edição – traduz o som de uma “luta ética”, um “combate que travaremos juntos, coletivamente”. “Os artistas conduzirão os espectadores pela selva oscura, para citar ­Dante, um lugar que não é apenas hostil, mas que também pode nos trazer mudanças e encantamentos”, diz, antes de justificar o Leão. “Escolhemos Jatahy porque ela é um dos artistas mais originais na utilização de uma linguagem entre a reflexão política e a radicalidade íntima da poesia”, diz.

“Christiane Jatahy e (o artista trans finlandês-egípcio) Samira Elagoz, premiado com o Leão de Prata, são dois lados da mesma moeda, no sentido de que fazem pesquisas que extrapolam códigos binários, entre a realidade e uma dimensão onírica, filosófica, que nos reconecta conosco e nos autoriza a falar sobre nós mesmos”, completa ­Ricci. “Christiane fala sobre si mesma enquanto mulher em um país humilhado pela ditadura, utilizando o dispositivo de uma câmera que olha para nós. É como se, por meio dessa tela, ela nos levasse a atravessar o espelho, como uma ­Alice no País das Maravilhas.”

Em uma das cenas de O Agora que Demora, a câmera se aproxima de um “­Ulisses” árabe, refugiado, que usa uma camiseta vermelha com os dizeres “Palm Springs”. A paisagem, no entanto, não é a da Califórnia, mas a do Vale do Bekaa, região agrícola libanesa, quase na fronteira com a Síria. O ator, em close, lê ­Homero: “Meus país acabou. Quando digo acabou, é isso. Não sobrou nada”.

As palavras ecoam na sala, sem que saibamos ao certo a que “país” ele se refere: Ítaca? Síria? Brasil? “É como um estilingue”, diz Jatahy. “Eu puxo a pedra até esgarçar o fio da realidade e a solto para rasgar a ficção.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A ágora do tempo presente”

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