Cultura

A adesão à beleza na pintura de Guignard

MAM de São Paulo traz setenta obras representativas do artista brasileiro e inclui suas fotomontagens

A tela Lagoa Santa, de Guignard, de 1950
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O mercado da arte no Brasil talvez tenha transformado injustamente a modernidade de Alberto da Veiga Guignard em pendor ao ornamento. Contudo, as cores claras, as naturezas-mortas sobre paisagens montanhosas, o sorriso irônico ou a reflexão ao infinito de seus personagens nos retratos, tão assemelhados àqueles dos autorretratos, são expressões ao ponto da universalidade, como provam os 70 trabalhos no MAM sob a curadoria de Paulo Sérgio Duarte.

Nascido em Nova Friburgo em 1896, com o lábio leporino que ele repetiu em sua representação de Cristo, Guignard estudou em Munique e Florença depois da morte do pai. Ao voltar, em 1929, era um importante nome ao lado de Portinari. Em 1944, convidado por Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte, para instalar um curso de desenho, encantou-se por Minas Gerais. E lá morreu, em 1962, dono de uma pintura que transitou por todos os gêneros, da paisagem ao retrato, à natureza-morta e às fotomontagens, três delas nesta exposição.

“Ocasionalmente foram feitas reservas a alguns trabalhos de Guignard por serem decorativos até nos seus suportes, tetos de salas e portas de armários, por exemplo. Foram vicissitudes da vida de um artista sem casa para morar. Mas, a esta altura, será preciso lembrar que um dos artistas mais decorativos do século XX foi Matisse? Por isso mesmo a exposição se encerra com um desses trabalhos: portas de armário pintadas por Guignard”, diz o curador.

CartaCapital: Gostaria de compreender como se deu a curadoria dessa exposição. Por quanto tempo você pesquisou e definiu as obras a serem expostas? Há obras de difícil reunião no caso dele, um pintor cujo trabalho é muito disputado pelo mercado?

Paulo Sergio Duarte: O convite partiu de Felipe Chaimovich, curador do MAM-SP, com o objetivo de realizar uma exposição de Guignard. Na verdade, acredito que visitei todas as importantes exposições institucionais do artista realizadas desde 1983. Além de algumas em galerias. O livro-catálogo de A modernidade em Guignard, organizado por Carlos Zilio para a exposição realizada na PUC-RJ, em 1983, traz uma apresentação minha, à guisa de prefácio, e que reputo, ainda hoje, o melhor conjunto de estudos sobre a obra do artista, apesar de um livro importante, como o de Lélia Coelho Frota (Guignard: Campos Gerais, 1997) ter sido publicado depois.

Sem falar nos estudos de Sonia Salzstein e de Rodrigo Naves. Portanto, a pesquisa para a exposição gozou desse meu convívio com a obra, inclusive na casa de colecionadores amigos. A definição das obras durou cerca de três meses. Eu sabia bem que tipos de obras queria e as que não queria, que não considero bem resolvidas, mas isto será visto, de modo evidente, na exposição. Num momento como esse, o curador sofre o assédio natural de marchands que têm interesse em expor as obras. Isso é absolutamente normal. O importante é saber que há uma limitação física preestabelecida, o próprio espaço da exposição. E é lá que se deverá tornar visível o conjunto, sem saturações, que torne fácil a fruição das obras. E depois haverá a chancela do MAM-SP, e não apenas do curador.

guignard-ouro-preto A obra Ouro Preto, de Alberto Guignard

CartaCapital: Parece-me uma mostra com grande representatividade e alguns momentos pouco conhecidos. Há a Paisagem Imaginante, de 1955, não comumente exposta, talvez próxima de uma perspectiva naïf. Ainda que Guignard não fosse um naïf, alguém, pelo contrário, de formação refinada, em algum momento ele teria se interessado por essa abordagem, à moda de pintores como Anita Malfatti no final da vida?

PSD: Há um engano em ver traços de pintor naïf na obra de Guignard. Raros artistas modernos brasileiros tiveram uma formação mais erudita que Guignard. O único a chegar formado, em 1924, foi Lasar Segall. Guignard saiu do Brasil com a família aos 14 anos, em 1907, para ir viver e estudar na Europa. O pai havia morrido em um acidente com arma de caça, em 1906, em Petrópolis. Sua mãe se casa com o alemão Barão Von Schilgen em 1907. Terminados os estudos colegiais, Guignard não se adapta ao estudo de agronomia, e com o apoio da mãe, a Baronesa Von Schilgen, matricula-se na Königliche Akademie der Bildenden Künste (Real Academia de Belas Artes) de Munique, em 1915, aos 19 anos. Só retornará definitivamente ao Brasil, em 1929, aos trinta e três anos de idade, depois de ter vivido em Florença, em cidades francesas, sempre pura e exclusivamente interessado em arte.

Assistiu, em primeira mão, ao cubismo, à Secessão Alemã, ao dadaísmo, e ao início do surrealismo. Além disso participou, mais de uma vez, do Salão de Outono, em Paris, e da Bienal de Veneza, de 1928, com um retrato de seu padrasto. Seus estudos demonstram um formidável domínio técnico que está bem longe de uma imaginação primitiva ou naïf. Em 1944, a convite de Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte, vai organizar uma escola livre de arte naquela cidade. Foi professor de grandes artistas, e nenhum desses alunos se lembrou de Guignard como um naïf. Ao contrário, as exigências de sua formação eram transmitidas aos seus alunos.

CartaCapital: O que o orientou na escolha das paisagens expostas? Elas têm essa perspectiva do sonho, digamos assim. Guignard foi influenciado em alguma medida pelo surrealismo quando esteve na Europa?

PSD: Na exposição, há dois gêneros de paisagens: aquelas modernas do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, e do Parque Municipal, em Belo Horizonte. E suas grandes invenções de um país sem chão. Germain Bazin, historiador da arte e, na época, um dos conservadores do Museu do Louvre, escreve no álbum de Guignard, em 6 de agosto de 1946, sobre “a rede de traços precisos com que ele revê a alma flutuante e onírica brasileira, que desenha com a visão aguda de um romântico e a qualidade de um sábio chinês”.

Esta é a primeira alusão conhecida à relação entre a pintura de Guignard e a pintura chinesa. Essa relação será explorada mais tarde por Carlos Zilio, artista e teórico da arte, em 1983, no catálogo da exposição de Guignard, no Solar Grandjean de Montigny, da PUC-RJ. A questão da pintura da paisagem chinesa, incorporada por Guignard, é uma das inúmeras singularidades da arte moderna desse período.

Sobre o surrealismo, não nos esqueçamos que um dos primeiros artistas a se tornarem amigo de Guignard na sua volta ao Brasil foi Ismael Nery, que explorou o surrealismo em sua pintura. Mas, além do surrealismo, não nos esqueçamos, também, que, em chinês, a “paisagem pura”, um grande gênero milenar da pintura daquela cultura se diz shan shui, algo como montanha d’água. O problema é que, em Guignard, as montanhas d’água estão povoadas. Há balões de festas de São João, igrejas e edificações a flutuar nesse país, até hoje, sem chão.

CartaCapital: Às vezes não parece haver um traço comum entre os autorretratos de Guignard e os retratos de seus personagens. Não só Cristo tem ocasionalmente seu lábio leporino, como me parece que o retrato Floriano ou O Domador o cita de um jeito vibrante, um tanto irônico. Era proposital nele ou acontecia ocasionalmente de se citar nos retratados?

PSD: É muito raro isto que você notou. Ao contrário, há três gêneros de retratos em Guignard: os autorretratos, nos quais ele nunca disfarçou seu defeito físico, o lábio leporino. Os retratos de grupos ou de pessoas isoladas e os retratos religiosos. No caso dos retratos religiosos há uma evidente intromissão do problema existencial com a obra. A vida de Guignard foi, primeiro, sofrida pelo defeito físico que, apesar das diversas cirurgias a que se submeteu, na época, nunca foi corrigido, as sucessivas paixões amorosas frustradas, materialmente atrapalhadas ao máximo, vivendo com frequência em cada de amigos e mecenas.

Nas obras sacras, é como se a mente do artista se identificasse com o sofrimento santificado do mártir. Não por acaso, a questão expressiva fica tão forte, e paleta de cores se modifica, diferente da sobriedade de outros retratos. Para a arte de Guignard, a religião deveria ser, não o êxtase da revelação, ou a alegria da natividade de Cristo, mas a representação do martírio.

25. GUIGNARD, Alberto da Veiga_Sabará, 1961_foto Eduardo Eckenfels.jpg A obra Sabará, de 1961

CartaCapital: Como Minas Gerais mudou sua pintura?

PSD: Primeiro mudou sua posição: é reconhecido como um mestre, e depois a paisagem, as montanhas e sua Ouro Preto tão querida, onde quis ser entrrado, depois de morrer em Belo Horizonte.

CartaCapital: Por quanto tempo ele realizou fotomontagens? E por que passou a fazê-las?

PSD: Ainda não me detive nesse assunto, mas não o acho importante no conjunto da obra. Para compreender um Athos Bulcão, por exemplo, é importante entender a fotomontagem.

CartaCapital: O texto de apresentação da exposição, de sua autoria, contém um tom melancólico, é um manifesto contra as incompreensões que a obra de Guignard possa suscitar hoje. Em que momento você detecta essa apreciação “ornamental” aplicada à obra dele?

PSD: Acho que não chega a ser um manifesto. Existe, realmente a reunião da beleza com a tristeza. Algumas dessas paisagens que tanto nos agradam são realmente tristes. E este é um paradoxo de Guignard, consegue ser decorativo e triste ao mesmo tempo. Ocasionalmente foram feitas certas reservas a alguns trabalhos de Guignard por serem decorativos até nos seus suportes: tetos de salas e portas de armários, por exemplo. Foram vicissitudes da vida de um artista sem casa para morar. Mas, a esta altura, será preciso lembrar que um dos artistas mais decorativos do século XX foi Matisse? Por isso mesmo a exposição se encerra com um desses trabalhos: portas de armário pintadas por Guignard.

A exposição está organizada para o grande público e não para especialista. Não existe nenhuma invenção curatorial pós-moderna. Tal como Cézanne, Guignard pintava temas: retratos, obras sacras, naturezas-mortas, paisagens. A exposição está organizada desse modo, por temas, e quer incluir o maior número de pessoas a essas obras e a esses gêneros. Gostaria muito que, uma daquelas pessoas que frequentam o Ibirapuera, entrasse no museu e entendesse a exposição.

 

Guignard – a memória plástica do Brasil moderno
Museu de Arte Moderna de São Paulo
De 7 de julho a 11 de setembro

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