Cultura

1950

Que lembranças consigo recuperar desse ano?

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Ainda sob o impacto de Vladimir Nabokov, procuro meus primeiros passos, meu tempo passado, perdido, tempo que ficou pra trás deixando pouco, quase nenhum rastro. Mais precisamente, 1950, o ano em que nasci.

Foi quando meu pai mudou-se com a minha mãe e dois filhos, da Avenida Paraná, onde moravam de aluguel numa casa que outrora fora um rendez-vous, para a Rua Rio Verde, bairro do Carmo, Belo Horizonte.

Lembro-me vagamente, de ouvido colado na parede, que durante os primeiros meses ali na Paraná, vários clientes ainda tocavam a campainha à procura das mocinhas e seus nomes de guerra.

Poucos dias antes de eu nascer, eles já estavam instalados na Rio Verde, numa casa grande e confortável, com três quartos, sala, copa, cozinha, dispensa, quintal, galinheiro e até um escritório, onde teclei numa Remington portátil, meus primeiros contos.

A machetona na primeira página de O Globo do dia em que nasci dizia: “Dispostos a dar uma lição aos comunistas, na Coréia” 

A matéria começava assim: “Com grande entusiasmo desembarcam os aguerridos veteranos das gloriosas lutas do Pacífico, francamente confiantes em suas novas armas anti-tanks”.

Também na primeira página, Getúlio Vargas anunciava: “Não retirarei a minha candidatura”

Não me lembro de nada disso, mas hoje, posso, com toda tranquilidade, mergulhar na Internet e recuperar a história. Mil novecentos e cinquenta foi ano em que a Radio Corporation of América, a RCA, colocou pra funcionar um tubo de TV totalmente colorido. A crítica malhou.

Foi em 1950 que morreu George Orwell, o autor de 1984, quando ainda faltavam trinta e quatro anos para começarmos a viver a loucura do grande irmão que vivemos hoje. Foi o ano em que deixou a cena, aos 50 anos, Kurt Weill, o autor de A Opera de Três Vinténs que, tantos anos depois, ganhou uma versão by Chico Buarque de Hollanda, aqui no país dos malandros.

A casa da Avenida Paraná era caiada de verde, mas assim que mudou para lá, meu pai deu uma mão de tinta cinza, trocou a fechadura e a lâmpada vermelha que ficava no alpendre por uma de cor amarelada, mais discreta.

Era um tempo de muita economia, cada centavo que sobrava era colocado caixinha de madeira com uns coqueiros entalhados na tampa. Era para comprar tijolos, telhas, cimento, cal e areia para a construção da casa da Rio Verde.

Quando ficou pronta, amigos e parentes chamaram o meu pai de louco. Louco porque ela ficava meio no fim do mundo. O meu pai descia do bonde no ponto final, na Praça Diogo de Vasconcelos, e subia seis quarteirões à pé porque o transporte não chegava até a rua onde ele havia erguido aquela casa, seu orgulho.

Foi em 1950 que Getúlio voltou à presidência pelo voto direto, que Willian Faulkner ganhou o Nobel de Literatura e a esquizofrenia matou o bailarino Vaslav Nijinski.

Foi em 1950 que, na casa do vizinho ao lado, que os meus pais viram, pela primeira vez, as imagens mexendo numa televisão em preto e braço, cheia de chuviscos.

Fotografias desse ano, tenho poucas. Eu de camisolinha branca no colo da minha mãe, ao lado de um portão gradeado, uma outra do meu avô sorrindo para mim e uma terceira do meu pai e da minha mãe, feita no Estúdio Constantino.

Mexendo aqui e ali, fico sabendo que foi no ano em que nasci, mais precisamente no dia 2 de novembro, uma quinta-feira, que morreu, aos 94 anos, um dos mais impertinentes e notáveis autores teatrais do século, o George Bernard Shaw.

Mas o fato mais triste que aconteceu em 1950, foi naquele 16 de julho, no Maracanã. O Brasil decidia a Copa do Mundo com o Uruguai e, aos 35 minutos do segundo templo, num rápido ataque pela direita, o meia Giggia marcou o segundo gol uruguaio. O meu pai contou esse lance, com detalhes, até eu completar uns seis, sete anos, disso eu me lembro muito bem. 

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