Clima
Clima hostil
Pesquisa aponta queda de 56,3% na produção agroecológica por causa de eventos climáticos extremos


Responsável por 74% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, segundo o Observatório do Clima, a produção de alimentos é também um dos setores mais impactados pela crise climática. O problema afeta, inclusive, a agroecologia, modelo de produção voltado à preservação ambiental, que abrange desde o manejo do solo e o plantio até a colheita e a comercialização. Uma pesquisa inédita realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), em parceria com a Fiocruz, apontou uma redução de 56,3% na geração de alimentos agroecológicos e perdas de 48,1% dos produtos em decorrência de eventos climáticos extremos no País.
O estudo apontou ainda o desaparecimento de 36,2% das espécies vegetais nativas e de 30,4% da fauna local, provocando desequilíbrios nos sistemas agroalimentares e perda biocultural. Esses impactos contribuíram para um aumento de 12,3% nos casos de adoecimento entre os rebanhos e criações nas mais de 500 experiências analisadas no mapeamento. A versão em português da pesquisa foi apresentada durante o Congresso Brasileiro de Agroecologia, realizado de 15 a 18 de outubro em Juazeiro, na Bahia.
A piora na qualidade do ar foi relatada por 42,9% dos entrevistados, especialmente entre moradores de grandes centros urbanos ou de áreas próximas à mineração. “Os grandes grupos – dos setores alimentar, mineral e energético – têm construído o que chamam de respostas para o problema das mudanças climáticas, mas que nós entendemos como falsas soluções, pois se baseiam quase exclusivamente em tecnologias e pouco dizem sobre as causas reais da crise climática. Apostam fortemente em processos de descarbonização, mas pouco discutem como esse gás chega à atmosfera”, ressalta Helena Lopes, pesquisadora da Fiocruz e integrante da ANA.
Com o título Agroecologia, Território e Justiça Climática, o estudo também registrou aumento de 34,4% nos casos de enfermidades associadas às mudanças climáticas, como doenças cardíacas, queda na imunidade e transtornos mentais. A elevação da temperatura impacta diretamente o acesso à água e compromete a produção agroecológica.
O minucioso estudo foi apresentado no Congresso Brasileiro de Agroecologia, em Juazeiro (BA)
Na Amazônia e no Nordeste, os índices de percepção sobre o aumento da temperatura ficaram acima da média nacional: 81% e 82%, respectivamente. São regiões que também expressaram grande preocupação com o avanço da aridez. “Estamos diante de processos distintos de desertificação na Amazônia e no Semiárido, cada qual com suas condições ecológicas específicas, mas que compartilham aspectos importantes e trazem muitos aprendizados”, afirma Lopes, que destaca a experiência exitosa das cisternas implantadas na Caatinga. “Os biomas têm desempenhado papéis diversos na mitigação e adaptação às mudanças do clima. No contexto da agroecologia, ao pensarmos no Semiárido, é essencial adotar o paradigma da convivência com as condições climáticas locais, o que pressupõe a articulação de diferentes tecnologias sociais adequadas ao bioma, ao território e à paisagem, como é o caso das cisternas de captação de água da chuva. São soluções que vêm sendo adaptadas com êxito em outras regiões do País, como observado no território dos Pampas”, explica a pesquisadora.
Os impactos da crise climática sobre a agroecologia tendem a agravar a insegurança nutricional, lamenta Lopes. “As mudanças no clima comprometem a capacidade produtiva e indicam uma preocupante perspectiva de escassez de alimentos de qualidade”, avalia. “Há uma oferta crescente de produtos ultraprocessados e industrializados que, apesar de desempenharem um papel em situações de fome extrema, também contribuem para o adoecimento da população”, acrescenta. Pelo menos 35% das experiências mapeadas no estudo dedicam-se à produção, beneficiamento, acesso a alimentos e ampliação de mercados, refletindo o papel fundamental da agroecologia na promoção da soberania alimentar.
Dos mais de 20 mil entrevistados, ao menos 60% apontaram as grandes corporações – em especial, o agronegócio – como principais responsáveis pelas mudanças climáticas nos territórios onde vivem, com impacto direto sobre a produção agroecológica. “Esse modelo empresarial extrai da natureza todos os seus bens comuns. E não será dentro desse sistema que alcançaremos a justiça climática ou conseguiremos reverter o cenário atual”, afirma Roselita Victor, da Coordenação da Articulação do Semiárido (ASA). “No campo da energia renovável, é preciso repensar os formatos adotados, pois, do jeito que está sendo implementada, essa transição tem expulsado famílias agricultoras de seus territórios, justamente aquelas que preservam a natureza. Toda essa reversão, essa crise climática que estamos enfrentando, não foi provocada pelos pequenos produtores.”
A pesquisa destaca a urgência de investimentos em políticas públicas, uma vez que 62,8% dos entrevistados não têm acesso a programas específicos voltados à agroecologia. O estudo também aponta caminhos sobre como esse modelo pode contribuir no enfrentamento das mudanças climáticas. Para 31,4% dos participantes, a conservação da agrobiodiversidade e a permanência nos territórios são estratégias fundamentais para a preservação ambiental. Isso inclui a proteção de sementes, de espécies nativas, de sistemas agroflorestais e das práticas de regeneração ecológica, como o manejo sustentável do solo.
“Na agroecologia, trabalhamos fortemente com a perspectiva dos territórios. Atuamos com a agricultura familiar, os povos indígenas, comunidades quilombolas, o que se traduz num processo de democratização dos sistemas alimentares, no sentido de garantir que alimentos saudáveis cheguem às populações em situação de vulnerabilidade, como, por exemplo, crianças em fase de crescimento nas escolas”, explica a pesquisadora da ANA. “Por isso, há toda uma estratégia de integrar mercados institucionais e políticas de abastecimento à própria lógica da agroecologia.” As versões em inglês e em espanhol do estudo serão apresentadas em novembro, na Cúpula dos Povos, durante a COP30, em Belém. •
Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Clima hostil’
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