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Vida despedaçada

Os 50 anos do suicídio do frei Tito de Alencar, torturado nos porões do regime

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Frei Tito foi um dos 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher – Imagem: DOPS e Acervo JB
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O Brasil relembra, com reportagens, filmes, livros, conferências e celebrações oficiais, os 60 anos do golpe de 1° de abril, início de uma ditadura sanguinária de 21 anos. O dia 10 de agosto marcará meio século da morte do frade dominicano Tito de Alencar Lima, que, preso, agredido e destruído psiquicamente nas salas de tortura, se enforcou na França, no verão europeu de 1974. O dever de memória nos leva a contar sua vida e seu engajamento com os dominicanos de São Paulo, aliados da Ação Libertadora Nacional, grupo de resistência criado por Carlos Marighella.

No prefácio do livro Um Homem Torturado − Nos Passos de Frei Tito de Alencar, de minha autoria e de Clarisse Meireles, lançado em 2014 pela editora Civilização Brasileira, o filósofo Vladimir Safatle escreveu: “Ao narrar a história de frei Tito a partir de um estudo exaustivo, Leneide e Clarisse fazem, no entanto, mais do que a reconstrução de processos históricos. Em certo momento, elas lembram desta afirmação feita por um torturador a Tito: ‘Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis’”.

Na verdade, continua Safatle, tal frase sintetizava de maneira precisa a natureza da violência e da máquina criminosa produzida pela ditadura brasileira. “Fazer as coisas sem deixar marcas visíveis, ou seja, tirar as marcas da violência da visibilidade pública, apagá-la e, com ela, deletar as histórias que tal violência destruiu.  “A ditadura brasileira foi, até agora, bem-sucedida nessa sua empreitada, e graças a tal sucesso ela conseguiu, de certa forma, nunca ter terminado. Nesse contexto de invisibilidade e esquecimento forçado, o uso da memória é um ato político maior, pois impede que o tempo possa extorquir reconciliações meramente formais.”

O delegado Fleury torturou até a alma do dominicano, que nunca conseguiu se recuperar – Imagem: Arquivo Público do Estado de S.Paulo

Preso com outros dominicanos em novembro de 1969, Tito escreveu, em fevereiro de 1970, o relato de sessões de tortura, dirigidas pelo capitão Albernaz e, anteriormente, pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. O texto saiu clandestinamente da prisão de São Paulo e foi publicado na revista americana Look e na italiana L’Europeo. Por este texto, a Look recebeu o prêmio de reportagem do ano de 1970, atribuído pelo New York Overseas Press Club, associação da imprensa estrangeira de Nova York.

Segundo Jean-Claude Rolland, o jovem psiquiatra que, em Lyon, com grande lucidez acompanhou Tito no auge do seu tormento, entre 1973 e 1974, “a barbárie que leva certos homens à prática da tortura contamina automaticamente todos os seus contemporâneos. Ela faz de cada um de nós cúmplices virtuais. Há, no fundo de nós mesmos, muito recalcada, uma capacidade de destruir o outro e o torturador apenas ativa essa capacidade de destruição”.

“Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”, vaticinou o capitão Albernaz, agente da repressão

Nos meses que passou no convento Sainte-Marie de la Tourette, perto de Lyon, depois de fracassar na tentativa de se inserir nos estudos na universidade e no Couvent Saint-Jacques, em ­Paris,­ ­Tito conviveu de perto com o jovem dominicano Xavier Plassat que conta no livro Um Homem Torturado: “O Fleury raramente o deixaria quieto e, nesses meses que compartilhamos, Tito alternaria constantemente entre o entregar-se e o resistir. Era como se estivesse acuado entre as paredes desse novo  ‘corredor polonês’, morrer vivendo, viver morrendo. Cumpria-se a louca promessa que recebera durante as sessões reais de tortura”.

Segundo palavras do próprio Tito, registradas pelos companheiros de cela, “quiseram me deixar dependurado toda a noite no pau de arara. Mas o capitão Albernaz objetou: ‘Não é preciso, vamos ficar com ele mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia’”.

Depois de passar pelo inferno da segunda série de torturas no início de 1970, frei Tito tentou se matar cortando as veias. Foi salvo in extremis, depois de internado no hospital militar do Cambuci. O ex-frei Roberto Romano conta: “O arcebispo Agnelo­ Rossi telefonou às autoridades, governador e comandante militar, e autorizaram uma visita a Tito no hospital. O arcebispo indicou dom Lucas Moreira Neves, que fora dominicano antes de ser sagrado bispo. Ele foi lá e viu Tito torturado, à beira da morte. Mais tarde, quando o advogado dos dominicanos, Mário Simas, pediu que dom Lucas dissesse na 2ª Auditoria Militar de São Paulo que tinha visto Tito torturado, mas dom Lucas negou, dizendo que tal testemunho prejudicaria sua atividade pastoral”. Romano acrescentou: “Como disse um autor do século XIX, ‘a Igreja é de fato divina,  caso contrário os homens já teriam acabado com ela’”.

Plassat conheceu Tito na França. Hoje vive no Brasil e atua na Pastoral da Terra – Imagem: Kay Cherbush

Incluído na lista dos 70 prisioneiros políticos a serem trocados pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, Tito aceitou deixar o Brasil a contragosto. Sabia que aqueles libertados através de sequestros tinham de assinar um documento que os bania do território nacional. Na foto dos 70 diante do avião que os levaria a Santiago do Chile, em pleno governo Salvador Allende, Tito está triste e abatido, em contraste com a euforia da maioria dos companheiros. Em Santiago, deu um depoimento para dois cineastas norte-americanos, Saul Landau e Haskel Wexler, para o documentário Brazil: A Report On Torture (Brasil: Um relato Sobre a Tortura). Ele conta das sevícias e de sua tentativa de suicídio cortando as veias “para denunciar assim que o Brasil não era mais somente o país do samba, do futebol e de Pelé, mas também um grande campeão da tortura”.

Ao receber Tito na emergência psiquiátrica do hospital de Lyon pela primeira vez, o médico Jean-Claude Rolland descobria o psiquismo destruído de uma vítima de tortura. Começava ali o acompanhamento de um sofrimento atroz do que ele chama de “sintomas-testemunho”. Nem a faculdade de Medicina nem sua prática de psiquiatra o tinham preparado para casos como o de frei Tito.

Depois de passar quase um ano em consultas no hospital com o doutor ­Rolland, atormentado pelas alucinações nas quais revia Fleury ameaçando seus pais e suas irmãs de tortura, Tito tenta se suicidar com uma dose de remédios. Mais uma vez é internado e salvo.

“A loucura está no torturador”, afirma Jean-Claude Rolland, psiquiatra que atendia o religioso brasileiro em Lyon

Em agosto de 1974, um camponês viu um corpo pendurado numa árvore. Terminavam ali o suplício e as torturas de ­Tito, revividas em seu sono e em seus momentos de alucinação, nos quais revia as ameaças e as torturas nos porões da ditadura. Rolland nos disse nas diversas entrevistas o que fizemos com ele: “Hoje, penso que a loucura está no torturador. É preciso ver a tortura como uma loucura. Alguns militares que torturaram na Argélia ficaram loucos. Só se pode fazer isso exercendo uma distorção mental muito grande. Albernaz, um dos torturadores de Tito, lhe disse: ‘Quando venho para a Operação Bandeirantes, deixo meu coração em casa’. Isso mostra que são seres divididos, como se houvesse uma cisão”, avalia o médico.

Na pedra tombal de frei Tito, no cemitério do convento Sainte-Marie de la Tourette, onde seu corpo descansou por nove anos, está escrito em francês e em português: “Frei Tito de Alencar Lima, O.P. 1945-1974 – Frei da Província do Brasil, encarcerado, torturado, ­banido do País, atormentado até a morte por ter proclamado o Evangelho lutando pela libertação de seus irmãos. Tito descansou nesta terra estrangeira. No dia 25 de março de 1983 ele foi trasladado para sua terra, Fortaleza, onde descansa com seu povo”. “Digo-vos que, se os discípulos se calarem, as próprias pedras clamarão” (Lucas, 19:40). Em março de 1983, depois de uma missa de corpo presente na catedral de Lyon, codirigida pelo bispo brasileiro dom Tomás Balduíno, Frei Tito voltou à sua terra, Fortaleza.

Seu antigo colega do convento Sainte-Marie de la Tourette, Xavier ­Plassat, se instalou no Brasil, onde mora até hoje e coordena o Programa da Pastoral da Terra contra o trabalho escravo. •

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vida despedaçada’

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