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Ver e ouvir a floresta

A Queda do Céu busca uma nova forma de retratar, em som e imagem, o mundo Yanomami e a falência civilizatória

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Em cartaz. O longa-metragem, dirigido por Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha e conduzido por Davi Kopenawa, ganhou 25 prêmios no Brasil e no exterior – Imagem: Redes Sociais e Soraya Ursine
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Muito tempo atrás, o céu quase caiu. E o xamã adverte, no início de A Queda do Céu, que se seguirmos, como sociedade, a viver sem ouvir os lamentos da floresta, ele voltará a cair: “Quando a terra se transformar de forma inesperada, vocês podem ter o dinheiro que for. Vocês podem correr com o dinheiro, pois, quando o vento da tempestade chegar, vocês não poderão silenciá-lo”.

Adaptação do calhamaço A ­Queda do Céu – Palavras de Um Xamã ­Yanomami

(Companhia das Letras, 768 págs., 101,91 reais), do líder Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert, o filme busca traduzir, em imagem e som, do chamado dos Yanomami para que os escutemos.

Dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha – ele cineasta, e ela atriz e produtora teatral ligada ao mundo amazônico –, A Queda do Céu tem como grande “astro” o próprio Kopenawa. Ele sempre está, no entanto, acompanhado de seu povo e dos espíritos da floresta.

O livro, de 2015, é assim definido no site da Companhia das Letras: “Relato de xamã Yanomami revela a riqueza e as lutas dos povos da floresta em livro de gênero único”. A mesma definição cabe ao filme, que tem sido ­recebido, mundo­ afora, como uma experiência cinematográfica muito particular.

Desde a primeira exibição, na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes­, em maio de 2024, o filme participou de 80 festivais e recebeu 25 prêmios nacionais e internacionais.

Antes de sua chegada ao circuito de salas do Brasil, na quinta-feira 20, o longa-metragem teve uma pré-estreia em Belém, no Instituto Ciência de Arte, durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30). A pré-estreia foi organizada pelo Observatório do Clima e contou com a presença de Kopenawa.

Os filmes realizados com e por indígenas têm se transformado em uma ferramenta de luta e mobilização

Embora de “gênero único”, como o livro que lhe deu origem, A Queda do Céu insere-se num imaginário audiovisual que vem sendo forjado pelos próprios indígenas. Kopenawa, inclusive, já havia sido roteirista, ao lado de Luiz Bolognesi, em A Última Floresta (2021), também sobre os Yanomami.

Não é exagero dizer que, nos anos recentes, o cinema feito por realizadores como Graciela Guarani, Olinda Tupinambá, Isael Maxakali, Sueli Maxakali e Alberto Álvares tem impactado a forma pela qual os não indígenas filmam as cosmogonias de diferentes povos. Álvares, que é Guarani-Nhandewá, disse em certa ocasião a CartaCapital: “Antes a gente era caçado. Hoje, a gente é caçador da nossa própria história”.

O início dessa produção tem como marco o Vídeo nas Aldeias, criado por Vincent Carelli, na década de 1980. O projeto levou para as aldeias os equipamentos de filmagem e edição que foram possibilitando a construção de novas narrativas sobre os povos originários.

Se, em um primeiro momento, se tratava, sobretudo, de um registro de dentro – sem os vícios da etnografia – de ritos e modos de ser e viver, esse cinema foi se transformando também em ferramenta de luta e sobrevivência – deles mesmos, de suas terras e de suas crenças e tradições.

Rocha, ao ouvir, na entrevista, a pergunta sobre o que é hoje o cinema indígena, procurou, de forma reflexiva, desconstruí-la, acrescentando um “s” à expressão: “Num País onde existem mais de 350 línguas e povos indígenas, acho que existe uma multiplicidade de propostas. Acho que os cinemas indígenas vieram potencializar ainda mais a noção de cinemas brasileiros”.

Atualmente, Rocha e Gabriela estão produzindo o primeiro longa-metragem dirigido por Morzaniel Iramari, que participa da fotografia de A Queda do Céu. “Quando o apresento, eu o apresento como um cineasta brasileiro, não como um cineasta indígena”, pontua o realizador.

Cineastas brasileiros, e não indígenas, Rocha e Gabriela procuraram, em seu retrato do universo Yanomami, “levar o cinema muito a sério”. A certa altura, eles são, inclusive, confrontados por um ancião que diz que se permite ser filmado a despeito de todo o sofrimento que “homens brancos” causaram a seu povo.

“Nos empenhamos, na montagem, na filmagem, em todo o processo do filme, para não reduzir o mundo Yanomami­ ao cinema que a gente conhece, mas, pelo contrário, expandir o cinema para que o mundo Yanomami possa se derramar”, diz Gabriela.

“A gente nunca teve o desejo de explicar o mundo Yanomami, de racionalizar o mundo Yanomami”, completa Rocha, acrescentando que eles procuraram, nesse processo, “confiar” no cinema. “A cosmologia Yanomami é muito visual e marcada pelo jogo entre ver e não ver. No filme, o som está muitas vezes em primeiro plano”, prossegue Gabriela.

A Queda do Céu se oferece, assim, como um convite à imersão. A temporalidade do filme afasta-se radicalmente daquela do cinema convencional e as imagens parecem buscar certa dimensão onírica. Isso tudo se conjuga com um aspecto político muito forte – com as questões do garimpo ilegal, das invasões e da destruição sempre muito ressaltadas.

“No filme, o que é sensorial e poético é também político”, diz Rocha. “A linguagem está enraizada em uma cosmovisão Yanomami e, nesse sentido, essa camada mais frontal é colocada de uma forma sensorial e poética.” Olho no olho, os Yanomami dirigem-se aos “homens da mercadoria” e apontam nossa falência civilizatória. •

Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ver e ouvir a floresta’

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