CartaCapital
Velho fantasma
A crise climática ressalta a disfuncionalidade crescente do setor elétrico


“O problema energético no Brasil é estrutural, não conjuntural.” A afirmação feita pelo engenheiro Ildo Sauer, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP e um dos maiores especialistas brasileiros no assunto, é motivo de reflexão às vésperas de o País ingressar no período de maior calor e consumo de energia em quase todas as regiões, na sequência de um quadro de estiagem severa e prolongada que nos últimos três meses deixou os reservatórios de boa parte das usinas hidrelétricas com metade da capacidade.
Premido pela incerteza quanto à eficiência de um sistema de transmissão que sofreu um desligamento acidental em agosto do ano passado, o Ministério de Minas e Energia solicitou ao Operador Nacional do Sistema a elaboração de um plano de segurança energética ancorado na utilização das usinas termelétricas, alimentadas por combustíveis fósseis e cuja utilização nos últimos dez anos representou um gasto de 200 bilhões de
reais. Como consequência imediata, a doer no bolso do consumidor, a Agência Nacional de Energia Elétrica adotou a partir deste mês a tarifa vermelha 1, que significa nas contas de luz residenciais um acréscimo de 4,46 reais para cada cem quilowatts-hora consumido.
Desde a liberalização do governo FHC, o País convive com riscos de racionamento e apagões
Segundo o ONS, os meses de junho a agosto registraram o menor volume de chuvas dos últimos 94 anos para o período nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Em reunião do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico foi apresentada para setembro uma previsão de entrada de água nos reservatórios que atingirá, no cenário mais favorável, 59% da média histórica. Com isso, a previsão do ministério é do uso de até 80% das termelétricas. O risco de uma crise de abastecimento como aquela de 2021, quando foi preciso adotar medidas de contenção da demanda, é afastado pelo governo. “O ONS colocará as térmicas para operar, mas não há risco de falta de energia”, garantiu o vice-presidente Geraldo Alckmin em reunião com dirigentes da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores em Brasília.
O quadro atual é diferente daquele de três anos atrás, última vez em que as usinas térmicas foram acionadas em grande escala. Se por um lado as opções de geração e estocagem de energia do sistema elétrico nacional são maiores com o crescimento das opções eólica e solar fotovoltaica, por outro a atividade econômica hoje é bem maior, pois em 2021 o
País ainda sentia os efeitos da pandemia de Covid-19. O aumento do consumo cresce desde então e a continuidade do ritmo de recuperação da atividade é certa, salvo uma hecatombe global. Para se ter uma ideia, em agosto de 2024, segundo o ONS, o consumo médio de energia no País foi de 81,3 megawatts, aumento de 11% em relação ao ano passado.
São aguardados com preocupação o mês de outubro, quando cai a contribuição eólica na geração de energia, e o horário de pico das 18 horas, quando cessa a geração solar. Será o momento de testar na prática o quanto o ONS se preparou para eventuais incidentes como o do ano passado, ocasião em que, segundo especialistas, a falha no sistema de transmissão ocorreu por falta de uma simulação adequada por parte do operador. “Simulam em computador todas as possibilidades de defeitos na rede para verificar se ela continuará a funcionar se houver falha em algum componente. Mas, para simular com precisão, eles precisam de modelos de cada componente da rede, cada gerador deve ser modelado com precisão para permitir uma simulação acurada”, explica Edson
Watanabe, professor da Coppe, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em agosto de 2023, o ONS tinha simulado e nada de grave deveria acontecer. “As medições durante o apagão mostraram, no entanto, que os modelos recebidos dos fabricantes dos geradores indicavam desempenho muito diferente do que realmente aconteceu. Os modelos de vários fabricantes estavam errados”, descreve Watanabe.
A seca afeta o nível dos reservatórios das hidrelétricas. As térmicas custaram 200 bilhões aos consumidores na última década – Imagem: iStockphoto e Michael Dantas/AFP
Em um workshop realizado em junho, a direção do ONS, segundo relatos, admitiu que os aerogeradores utilizados não são do modelo previsto e por isso não conseguiu simular os eventuais defeitos na rede. “O normal seria o ONS solicitar aos fabricantes que entregassem os modelos corretos. Mas ao menos dois fabricantes presentes declararam que não vão entregar os modelos solicitados, disseram que é sigilo industrial. O resultado é que o ONS está operando às escuras, voo parcialmente cego no que concerne às usinas eólicas”, diz Watanabe. O integrante da Academia Brasileira de
Ciências reconhece a alta competência do pessoal técnico do ONS, mas afirma que, sem modelos precisos, eles ficam limitados. “Não podem prever possíveis problemas e, por cautela, o ONS deve estar operando com significativa margem de segurança. Possivelmente, longe do ponto de melhor custo para nós, os usuários.” Procurado por CartaCapital, o diretor-geral do ONS, Márcio Rea, não atendeu aos pedidos de entrevista até o fechamento desta edição.
Segundo Sauer, os episódios recentes de queda de transmissão em Rondônia, Amapá e Ceará revelam uma ausência de transparência sobre o estado real da rede, sua manutenção e capacidade de resposta. Assim como aconteceu no fim do ano passado e começo deste em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, quando as redes de distribuição apresentaram problemas no período de maior consumo de energia. “Isso acontece porque a lógica com que as empresas de distribuição e transmissão são operadas busca, acima de tudo, maximizar o retorno para o acionista que, por sua vez, pressiona os dirigentes. E estes, com visão de curto prazo, não tomam as providências de longo prazo de fazer uma manutenção preventiva centrada em confiabilidade”.
O governo estuda recriar o horário de verão, para aproveitar melhor as usinas eólicas e solares
O professor da USP avalia que o modelo de organização elétrica e energética brasileiro em geral está exaurido. “A reforma constitucional de 1995 e as leis que se seguiram, incluindo a Lei de Petróleo e Gás de 1997 e os vários remendos que foram feitos em 2004, mantiveram o critério de que poderíamos operar o sistema usando uma filosofia de liberalização total e um programa de computador feito 30 anos atrás, quando os critérios, as tecnologias, a tipologia de recursos e o comportamento da demanda eram substancialmente diferentes de hoje.” De lá para cá, acrescenta, houve um permanente esvaziamento da capacidade de formulação de políticas públicas debatidas por técnicos dotados de uma visão de sociedade. “Houve, com a liberalização, uma predominância cada vez maior dos interesses de vários grupos e lobbies.”
Os leilões de energia realizados nos últimos anos, diz Sauer, tiveram critérios de escolha destituídos de fundamentos econômicos sólidos. “Leilões baseados na escolha de usinas térmicas a partir de 2005, por exemplo, supondo que o custo do combustível seria mais baixo, o que fez com que ao longo dos anos tenham sido gastos 200 bilhões de reais com a queima de combustíveis fósseis. Com 30% disso teríamos feito usinas fotovoltaicas que prescindiriam dessa queima.” Para o especialista, o conjunto de más escolhas decorre do fato de que “o governo perdeu a capacidade de buscar a otimização do sistema, com aumento de confiabilidade e redução dos custos globais, para atender aos dogmas do mercado, especialmente do grupo das térmicas”.
A possibilidade de uma tragédia energética com racionamento, diz Sauer, é muito pequena. “Mas isso não é suficiente para nos tranquilizar em razão do papel que o sistema energético tem como indutor do desenvolvimento. Está exaurido o potencial do modelo criado nos anos 90, e mantido desde então, para planejar e contratar a expansão, fazer a manutenção e a operação. Estão exauridos os papéis do ONS e da Aneel e o papel pífio que é reservado hoje ao Ministério de Minas e Energia, insuficiente para suas responsabilidades. O quadro institucional tem que ser alterado e a lógica que nós operamos tem que ser alterada. Isso não significa piorar a situação dos investidores.”
Na segunda-feira 16, o ministro Alexandre Silveira, pediu ao ONS um estudo sobre a possibilidade da volta do horário de verão, que poderá ter início em 45 dias. Antes, Silveira quer um levantamento detalhado de toda a capacidade de despacho de energia em cada setor de geração, além dos custos decorrentes da medida. “O horário de verão é uma possibilidade real”, diz o ministro. Sobre o acionamento das térmicas e o aumento de tarifas, Silveira afirmou que “o problema climático atravessado pelo Brasil é sério e o setor energético é o que mais sofre.”
Professor do Instituto de Economia da UFRJ, Nivalde de Castro defende a adoção do horário de verão por induzir o uso mais intenso da energia eólica e solar. “O governo Bolsonaro acabou com o horário de verão pois a economia de energia elétrica era pequena. Hoje, com uma matriz elétrica com mais eólica e solar, atrasar os relógios em uma hora dará mais eficiência energética ao sistema nacional, pois pela manhã venta mais. O que é 9 horas passará a ser 8 horas, fazendo com que o consumo seja maior e a geração eólica seja mais aproveitada. Na parte da tarde faz mais sol e o atraso de uma hora trará o consumo das 19 horas para 18, aproveitando mais energia solar.”
Para o presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia e ex-diretor-geral do ONS, Luiz Barata, o sistema elétrico do Brasil precisa avançar na sua capacidade de dar resposta a uma demanda que não para de crescer. “O governo precisa, sobretudo, buscar alternativas para aqueles que têm que decidir no fim do mês se pagam a conta de luz ou compram comida.” •
Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Velho fantasma’
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