CartaCapital
Sob os escombros
O ressurgimento do extremismo na Europa deriva do esfacelamento da ordem mundial do pós-Guerra


As últimas quatro décadas de políticas neoliberais na Europa produziram grande polarização social. Até o início da década de 1980, a sensação de ampla segurança era proporcionada por uma forte base institucional representada pelo Estado de Bem-Estar Social, pleno emprego e políticas de renda de corte keynesiano, nas quais os acordos salariais entre empresas e sindicatos incorporavam parte dos ganhos de produtividade aos salários dos trabalhadores. Os ganhos reais de renda estimulavam o consumo e dinamizavam a produção, compondo um círculo virtuoso. O investimento na expansão produtiva e na infraestrutura era decorrência da economia política lastreada no conceito fundamental formulado por John M. Keynes, denominado “princípio da demanda efetiva.” Foi a chamada “Era do Ouro” do capitalismo do pós-Guerra, à qual se refere Eric Hobsbawm, ou, como chamam os franceses, les trente glorieuses, de ampliação dos níveis de vida, na Europa Ocidental, América do Norte, alguns países da Ásia e Oceania. Na “periferia” do sistema mundial, os “desenvolvimentismos” nacionais, com maior ou menor êxito, eram permitidos e em certa medida apoiados pela potência hegemônica, os EUA.
Esse período, de grande avanço econômico e social, principalmente nos países considerados desenvolvidos, e que perdurou da década de 1950 até o fim dos anos 1970, foi possível numa determinada situação geopolítica, na qual a Economia Política Internacional, liderada pelos EUA, estava organizada para conter o “perigo vermelho”, representado principalmente pela União Soviética, mas também por movimentos que propunham a revolução socialista, espalhados pelo mundo.
Os partidos moderados de direita e de esquerda cederam ao neoliberalismo e à financeirização
No imediato pós-Guerra, com a Europa em ruínas, e os países do Leste Europeu, inclusive com parte da Alemanha, transformados em “satélites” de Moscou, os partidos comunistas eram fortes na Itália e na França, por exemplo, e havia o temor de que também a Europa Ocidental fosse para a órbita da URSS, o que fez com que os Estados Unidos patrocinassem o Plano Marshall de reconstrução do continente, a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (para pô-los sob proteção e tutela estratégica norte-americana) e apoiassem o processo europeu de integração, com vistas ao crescimento econômico e estabelecimento de relações pacíficas entre países os quais recentemente haviam travado a mais mortífera das guerras.
Então, é preciso compreender que havia uma determinada ordem política mundial que dava sustentação a essa Economia Política Internacional. Contudo, essa ordem começa a ser rompida no início dos anos 1970 pelo seu criador e patrocinador, os EUA, para quem o regime monetário internacional dólar-ouro tornou-se um fardo (exigia que os Estados Unidos lastreassem sua moeda em reservas de ouro, o que estabelecia um constrangimento e também não possibilitava a opção da desvalorização e ganho de competitividade) e se cria o regime dólar-flutuante, com paridades estabelecidas pelo mercado e necessidade de liberdade cada vez maior dos movimentos de capitais, o que viria a tornar-se a chamada “globalização financeira” a partir dos anos 1990, após a queda da URSS, a reunificação da Alemanha e o fim do bloco socialista no Leste Europeu.
A guerra na Ucrânia, às portas da Europa, anaboliza os ressentimentos e provoca um perigoso rearmamento do continente – Imagem: Roman Pilipey/AFP
A “financeirização” torna o funcionamento da economia motivado pela gestão do valor dos ativos, um “capitalismo patrimonial.” Essa modalidade “rentista” na qual “equilíbrio fiscal” é o mantra não mais tem como foco a demanda e funciona com a administração da economia centrada em baixas taxas de inflação, não mais tendo, portanto, como objetivo o pleno emprego. Bolhas especulativas nos mercados imobiliário e de ações, e o endividamento relativo a estas passaram a ser a “fonte de dinamismo” do capitalismo nos países desenvolvidos. Os ganhos salariais progressivos dos pactos entre capital e trabalho foram substituídos pela arbitragem da deslocalização produtiva. Esta realidade faz com que os países passem a conviver com altas taxas de desemprego, estagnação salarial e corte de gastos públicos, em especial aqueles dos serviços estatais prestados à maioria da população. Portanto, a aplicação dessas políticas neoliberais, com o efeito de concentração de renda, precarização do trabalho e do Estado de Bem-Estar Social, fragilizou os partidos moderados de direita e esquerda, que as abraçaram e se alternaram no poder na Europa, a partir do pós-Guerra. Desde a década de 2000, contudo, vê-se um persistente crescimento das siglas de tendência de extrema-direita e o início da participação dessas siglas nos governos europeus.
Essa frustração das classes médias e dos trabalhadores com o seu empobrecimento nas últimas décadas e a incapacidade de suas elites políticas de centro-direita e centro-esquerda de propor alternativas alimentou o discurso da extrema-direita, favorável ao Estado Nacional e a uma “identidade nacional.” A extrema-direita tem crescido também nos dois países fundadores do bloco, a Alemanha e a França, como se pôde observar nas eleições para o Parlamento Europeu deste ano e na recente eleição parlamentar francesa, embora nesse último caso o resultado tenha sido aquém do esperado, com uma reviravolta no segundo turno e vitória da frente de esquerda, com o centro-direita do presidente Emmanuel Macron em segundo lugar e a “Reunião Nacional”, de extrema-direita, em terceiro. Cresceu a sua participação no Parlamento, embora a união das demais forças políticas tenha barrado sua ascensão ao poder. A vitória histórica do Partido Trabalhista, no Reino Unido, dias antes, também aparece em um contexto de fortalecimento da esquerda tradicional do continente.
A frustração das classes médias e dos trabalhadores com o empobrecimento nas últimas décadas fomenta a extrema-direita
No caso francês, o número de eleitores tem crescido nas últimas décadas e a “Reunião Nacional”, liderada por Marine Le Pen, esteve no segundo turno das duas últimas eleições presidenciais contra Macron. Na Alemanha, firmou-se como a terceira força no Parlamento nacional o partido de ultradireita, integrado inclusive por simpatizantes do nazismo, “Alternativa para a Alemanha”, AfD, na sigla em alemão. Como é comum na plataforma desses partidos, uma forte inclinação a propostas anti-imigração, questionamentos à integração europeia, à moeda comum e à política externa desses países e do bloco.
No caso do “Alternativa para a Alemanha”, a agremiação defende ser do interesse nacional alemão, da sua indústria exportadora, boas relações com a China. Berlim atualmente tem seguido os EUA e buscado, em certa medida, rever a sua aproximação com o gigante asiático. Para a AfD, a política externa não deve estar pautada por “valores”, mas pelos interesses. Nessa visão, seguir a política dos EUA é contrário aos interesses da Alemanha. Claro que, uma vez eventualmente no poder, constrangimentos e pressões e também concessões vindas, no caso dos EUA, podem produzir uma “convergência.”
A extrema-direita acaba de ampliar sua presença no Parlamento Europeu – Imagem: Pietro Naj-Oleari/Parlamento Europeu
A guerra entre Rússia e Ucrânia marca um ponto de inflexão. Os laços políticos e econômicos entre russos e europeus, em especial alemães, foram cortados como resultado da guerra, e a Alemanha, com apoio dos EUA, lidera um processo de forte investimento bélico na União Europeia, o que, inclusive, tende a ser o caminho para a recuperação econômica, tendo em vista que a perda do gás barato da Rússia foi um pesado golpe para a economia europeia, em especial para a indústria exportadora alemã. O “Ocidente coletivo” arma-se diante da Rússia e, no “Indo-Pacífico”, busca conter a China. Não há como adiantar como a extrema-direita, derrotada agora na França, mas que eventualmente pode estar no poder no país e também na Alemanha no futuro, pode encaixar-se nesse arranjo. Tendo em consideração o acerto dos EUA com o governo anterior de extrema-direita da Polônia, em apoio à sua forte militarização, para ser a “linha de frente” contra a Rússia e da própria “acomodação” da União Europeia com governos de extrema-direita da região, é possível imaginar que uma recuperação econômica lastreada no aumento do gasto bélico possa consolidar a “normalização” em curso dos governos de extrema-direita no bloco e a adaptação destes às instituições europeias. Se o resultado das eleições atuais na França será uma mudança de tendência, é preciso esperar. Muito dependerá do sucesso de um eventual governo de esquerda em coalizão com o centro-direita de Macron.
No caso de insucesso, é grande a probabilidade de a “Reunião Nacional” tornar-se a tendência política dominante e isso servir como estímulo às forças de extrema-direita na Europa e no mundo. Nesse caso, a questão é como se dará esse processo de “normalização” da extrema-direita nos principais países da Europa, com seus reflexos sociais e políticos. A estrutura do poder global norte-americano deve atuar para manter a coesão eureopeia em torno da Otan e da União Europeia, muito importante para seus objetivos geopolíticos, mas a fratura social europeia é grande e o futuro da integração seguirá incerto. •
*Pós-doutorando em Economia Política Internacional no Instituto de Economia da UFRJ. Pesquisa a política externa da Alemanha e suas relações com grandes potências (EUA, China e Rússia). Colaborador do Observatório Internacional do Século XXI.
Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sob os escombros’
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