CartaCapital
Sob o signo de Pirandello
As declarações de Lula nas suas duas últimas visitas causam rebuliço e diversas interpretações mundo afora


Assim é, se lhe parece
é o título de uma peça de Luigi Pirandello, o mais prolífico e completo escritor do século passado, como romancista, contista, teatrólogo e ensaísta, Prêmio Nobel em 1934
Ao tomar a palavra, Lula amiúde empolga-se com a sua própria autenticidade, embora nem sempre seja feliz no tom, a despeito da solerte assessoria do conselheiro especial Celso Amorim, a seu lado em diversas funções. Como chanceler, Amorim esteve com o presidente na tentativa de mediação da crise iraniana, conduzida juntamente com o presidente turco Recep Erdogan, em 2010. Nas duas entrevistas com as quais agora Lula ganha as manchetes, uma na recente viagem à China, outra nos Emirados Árabes, manifesta-se a respeito do conflito russo-ucraniano, e na sua fala, em ambas as ocasiões, exibe uma vocação pirandeliana.
Ambos os pronunciamentos se prestam a mais de uma interpretação, mas a mais transparente, a primeira, parece indicar a desaprovação da política dos Estados Unidos, a bem do melhor entendimento das razões de Vladimir Putin. Colhe de surpresa, desta forma, quantos o imaginaram neutral, embora um fio condutor supostamente lógico se desenrole ao longo de suas declarações. Conforme já se deu em outras oportunidades, Lula alegou não ter sido bem compreendido, conquanto suas palavras tenham sido cristalinas. É a partir delas que a situação se oferece à análise dos meios políticos nas mais diversas instâncias, desde as casas parlamentares até as organizações midiáticas. Com Amorim, Mino Carta conversou longamente na madrugada entre segunda e terça-feira, que para o conselheiro especial já era o dia seguinte, em virtude do fuso de cinco horas. Naquele momento, o desfecho do enredo parecia inimaginável, sem retirar Pirandello da ribalta. É evidente que Lula aspira a um papel de protagonista, e não é coisa de hoje. Houve um momento em que CartaCapital chegou e enxergar nos comportamentos do presidente a intenção de substituir o próprio papa. Não faltou quem inventasse um entrecho jocoso e anedótico, pelo qual Lula intervinha no Vaticano e, peremptoriamente, aposentava o papa Francisco para ele mesmo sentar-se ao lado de São Pedro na transferência aos gentios da graça divina.
Celso Amorim, fiel escudeiro – Imagem: Getty Images/AFP
Os últimos pronunciamentos do presidente foram, indubitavelmente, um passo em falso. O editorial do Estadão sustentou: “A loquacidade irresponsável de Lula na China põe em risco a imagem do Brasil como neutro nos grandes conflitos, sem que o País tenha ganhado nada, a não ser a desconfiança ocidental”. Já o editorial da Folha de S.Paulo também destacou: “Lula assume custo político desnecessário ao se alinhar a Pequim e a Moscou de forma ostensiva”. E o chanceler russo, Serguei Lavrov, veio ao Brasil, encontrou Lula e constatou: “Brasil e Rússia têm visão similar”.
O Porta-voz da União europeia diz não haver dúvidas quanto à identidade do agressor e da vítima no conflito na UCRâNIA
Obviamente, EUA e União Europeia criticam a posição de Lula em relação à guerra. O porta-voz da Casa Branca definiu a postura do presidente brasileiro como “profundamente problemática”. E acrescentou: “O Brasil está repetindo a propaganda da Rússia sem olhar para os fatos”. Peter Stano, porta-voz principal para assuntos externos da União Europeia, apontou a Rússia como única responsável pelo conflito, o maior no continente desde a Segunda Guerra Mundial: “Não há questionamentos sobre a guerra e sobre quem é o agressor e quem é a vítima”. E recordou ser o Brasil um dos 143 países que condenaram, ainda no governo Bolsonaro, a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Recebido com todas as honras diplomáticas, Lavrov pontificou: “As visões do Brasil e da Rússia são similares em relação aos acontecimentos ocorridos no mundo para atingir uma ordem global mais justa, correta, baseada no Direito”. Não faltou o convite a Lula para uma visita à Rússia, onde, neste exato instante, um jornalista crítico do Kremlin é condenado a 25 anos de prisão. É do conhecimento até do mundo mineral que a Rússia de Putin é uma ditadura feroz e vingativa, independentemente das razões do conflito desigual.
O chanceler russo se ri da destruição em Kiev – Imagem: Ministério do Exterior da Rússia/AFP e Ihor Tkachov/AFP
De saída, CartaCapital viveu uma situação de perplexidade. Sempre louvamos a neutralidade brasileira, mas não podemos, nestas circunstâncias, apoiar incondicionalmente posições definidas nem sempre com a clareza indispensável a um perfeito entendimento. Em todo caso, conforta-nos a presença ao seu lado de um conselheiro especial como Celso Amorim, o qual chegou a tempo para resolver o imbróglio. Não somente com a rapidez que o momento aconselhava, conforme seus hábitos, Lula já disse ter sido mal compreendido. Mas também acentuou não aprovar a invasão da Ucrânia. Foi um lance oportuno a dirimir dúvidas mais do que justificadas. Temos de convir, porém, que a primeira impressão do passo em falso, ou seja, do ingresso em área minada, ainda permanece, em virtude, inclusive, das idas e vindas nas palavras do presidente da República. •
Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sob o signo de Pirandello’
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