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Quimera?
Obstruída ao longo das últimas décadas, a solução dos dois Estados é a única chance de paz duradoura


O “dia seguinte” ao conflito entre Israel e o Hamas em Gaza ainda pode estar a semanas ou meses de distância. Mas chegará. “Quando esta crise acabar, precisará haver uma visão do que virá depois”, disse recentemente o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. “E, na nossa opinião, tem de ser uma solução de dois Estados.”
Contra um pano de fundo de repetidos ciclos de violência e uma ocupação militar que dura mais de meio século, diplomatas e analistas concordam: uma paz duradoura deverá se seguir aos combates mais sangrentos entre israelenses e palestinos em décadas. A solução de dois Estados para o amargo conflito que assola a região há quase um século – dividir a terra entre o Rio Jordão e o Mediterrâneo para criar dois Estados independentes e soberanos, Israel e Palestina, lado a lado – tem sido frequentemente endossada por líderes mundiais. Mas foi impossível para israelenses e palestinos chegarem a um acordo. Desde o fracasso, em 2014, das conversações mediadas por John Kerry, então secretário de Estado dos EUA, e enquanto os assentamentos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental proliferavam, o consenso tem sido acerca da morte dessa solução.
Cada vez mais à direita, a política israelense sabota a autonomia palestina desde os acordos de Oslo
Essa opinião foi reforçada por pesquisas de opinião feitas pouco antes do ataque do Hamas a cidadãos israelenses em 7 de outubro. Em setembro, estudo do Centro de Pesquisas Pew concluiu que apenas 35% dos israelenses acreditavam ser “possível encontrar uma forma de Israel e um Estado palestino independente coexistirem pacificamente”, queda de 15 pontos porcentuais desde 2013. E uma enquete do Gallup concluiu que apenas 24% dos palestinos na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental apoiam uma solução de dois Estados, ante 59% em 2012. Os jovens palestinos estavam significativamente menos entusiasmados do que seus pais.
A solução de dois Estados pode ser retomada? Diante da continuidade da guerra, das tensões regionais e da presença de colonos no que seria um Estado palestino, como poderá ser? “Não existem alternativas viáveis”, afirma Yossi Mekelberg, do grupo de pensadores britânico Chatham House. “A solução de dois Estados é a opção menos ruim para permitir que tanto israelenses quanto palestinos gozem de seus direitos políticos, civis e humanos.” Yossi Beilin, antigo negociador de paz israelense, disse: “É a única solução, não há concorrente realista”. Segundo Aaron David Miller, conselheiro para o Oriente Médio de governos norte-americanos democratas e republicanos, é necessário, no entanto, “distinguir entre aspiração e realidade”. Miller prossegue: “As chances são muito, muito baixas. É basicamente uma missão impossível”. Existem diversos obstáculos no caminho para uma solução de dois Estados, disse, entre os quais, no rescaldo imediato da guerra, “ficaremos com duas sociedades profundamente traumatizadas”.
A Guerra do Yom Kippur, há 50 anos, aprofundou a aliança inquebrantável entre os Estados Unidos e Israel – Imagem: Ministério da Defesa de Israel
O governo de extrema-direita de Israel opõe-se visceralmente à ideia de um Estado palestino independente, e seu líder, Benjamin Netanyahu, barrou o progresso dessa discussão durante muitos anos. Poucos esperam que ele sobreviva como primeiro-ministro quando a guerra terminar, mas não há uma alternativa óbvia pró-paz à espera. A Autoridade Palestina, liderada por Mahmoud Abbas, que esteve praticamente ausente da cena no último mês, é, por sua vez, ineficaz e carece de credibilidade. Abbas tem 87 anos e seu mandato de quatro anos como presidente dura quase 19. Seu único sucessor plausível, Marwan Barghouti, importante líder da facção política Fatah e herói para muitos palestinos, está numa prisão israelense há 21 anos, a cumprir cinco penas de prisão perpétua por homicídio. “O que falta de ambos os lados é liderança e vontade política. Os dois lados precisam acordar depois desta guerra horrível e encontrar uma nova liderança”, disse Mekelberg.
Nos Estados Unidos, tradicionalmente motor do processo de paz no Oriente Médio, as energias de Biden serão inevitavelmente absorvidas na luta para manter sua presidência nos próximos 12 meses. Se ele perder para Donald Trump, as hipóteses de relançar a solução de dois Estados são quase nulas. Os países árabes, atores cruciais em qualquer processo, podem ser contidos pela fúria de suas populações diante do enorme número de mortes de civis e da crise humanitária desesperada em Gaza.
Mesmo que Israel, os palestinos, os Estados Unidos e os países árabes estivessem determinados a avançar com um novo processo de paz, os principais desafios de qualquer acordo – fronteiras e assentamentos israelenses na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, o futuro de Jerusalém, o “direito de retorno” dos refugiados palestinos e de seus descendentes, segurança e Gaza – ainda estão sobre a mesa. Os princípios gerais de um acordo são, porém, aceitos há muitos anos, disse Hiba Husseini, advogada palestina baseada em Ramallah. “Sabemos como é uma solução de dois Estados.”
Ela e Beilin produziram uma proposta para uma confederação israelense-palestina, “coabitação de dois Estados soberanos”, para abordar uma série de detalhes. Alguns assentamentos judaicos próximos à “linha verde” anterior a 1967, a linha do acordo de armistício traçada em 1949, no fim da guerra árabe-israelense, e que se seguiu à declaração do Estado de Israel em 1948, seriam incorporados a Israel, com a troca de terras compensatória para um novo Estado palestino. O princípio é amplamente aceito por todas as partes.
De acordo com o plano da confederação, os israelenses que vivem em assentamentos no interior da Cisjordânia poderiam escolher entre se mudar para casas em Israel ou permanecer onde estão como cidadãos israelenses com residência permanente na Palestina, concordando em cumprir as leis do novo Estado. Um número comparável de cidadãos palestinos poderia se mudar para Israel nas mesmas condições. A Cidade Velha de Jerusalém, lar de importantes locais sagrados muçulmanos, judeus e cristãos, passaria a ser uma “cidade aberta”, administrada conjuntamente por ambos os países. A cidade aberta seria mais tarde ampliada para abranger todos os bairros judeus e muçulmanos de Jerusalém.
Os principais pontos para a criação de dois Estados são conhecidos. A simples “gestão” do conflito está esgotada
Gaza “não pode ficar fora” de um futuro Estado palestino, disse Husseini. Haverá necessidade de corredores terrestres entre a Cisjordânia e Gaza para permitir o acesso, mas “existem projetos para isso”. Segundo esses planos, o Estado palestino teria uma força policial, mas não um exército ou força aérea. E um número simbólico de descendentes de refugiados palestinos seria autorizado a voltar a viver em Israel. O princípio de dois Estados lado a lado é “não apenas possível, mas crítico”, disse Husseini. “Antes desta guerra, havia uma política de ‘gestão’ do conflito. Agora está claro que era uma política falha.”
Entretanto, a solução de um Estado único ganhou força, especialmente entre os palestinos e seus apoiadores, na ausência de qualquer movimento no sentido de um Estado palestino ao lado de um Estado israelense. A ideia é essencialmente que exista um Estado democrático na terra que hoje é Israel e os territórios palestinos, com votos iguais para todos. Significaria, porém, o fim do Estado judaico, pois os judeus se tornariam uma população minoritária no Estado único.
Os números já são desiguais. De acordo com o departamento de estatísticas israelense, no ano passado os judeus representavam 74% da população israelense, 7 milhões. A população árabe de Israel era de 21%, ou quase 2 milhões. Neste ano, o Gabinete Central de Estatísticas palestino estimou a população da Cisjordânia e de Gaza em quase 5,5 milhões. Somados aos 2 milhões de palestinos em Israel, o total é de quase 7,5 milhões, mais do que a população judaica de Israel. E a população palestina é significativamente mais jovem e, portanto, cresce mais rapidamente.
Um só Estado não é realista, disse Yehuda Shaul, cofundador do Ofek, grupo de estudos israelense independente dedicado a promover a solução de dois Estados. “Você consegue ver uma realidade em que os judeus israelenses abdicam de sua hegemonia demográfica na linha verde e decidem partilhar a terra e tornar-se uma minoria?” Shaul acrescentou: “Acredito que dois Estados estão a dobrar a esquina? Não. Acredito que o projeto nacional do Estado de Israel é evitar uma solução de dois Estados? Sim”.
O público palestino logo voltaria a abraçar a solução de dois Estados, disse Husseini. “A opinião nas ruas responde ao que acontece. O clima reflete o momento, e agora o momento é muito sombrio. Mas, se tivermos um horizonte onde possamos ver um fim de jogo, o clima mudará.”
A União Europeia afirmou estar “pronta para contribuir para relançar um processo político com base na solução de dois Estados”. Apelou à realização de uma conferência de paz no prazo de seis meses após o fim da guerra. “A paz não virá por si só, tem de ser construída”, disse Josep Borrell, chefe da política externa da União Europeia. “A solução de dois Estados continua a ser a única viável que conhecemos. E se temos apenas uma solução, devemos usar toda a nossa energia política para alcançá-la.”
A maioria dos observadores concorda sobre a necessidade de uma liderança política nova e corajosa nos dois lados. “Ambos terão de passar por ajustes de contas”, disse Miller. “O que é necessário é um (Nelson) Mandela e um (FW) de Klerk, ou alguém parecido.” Segundo Beilin, com liderança e vontade política, um acordo estrutural poderia ser alcançado de forma relativamente rápida: “Não semanas, mas um ano é possível”. O apoio público viria em seguida. Ele acrescentou: “Na preparação para Oslo, os históricos acordos de paz de 1993, houve oposição total a qualquer contato com a Organização para a Libertação da Palestina. Depois que o acordo foi assinado, houve um enorme apoio. E acredito que, se for possível chegar a um acordo após esta guerra, também haverá um amplo apoio”. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.
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