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A saída é “desprivatizar” o sistema de saúde, defende a pesquisadora Lígia Bahia

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A realidade está melhor, mas ainda é insuficiente diante das necessidades do País, afirma a pesquisadora – Imagem: Acervo Abrasco e Governo da Bahia
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Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a pesquisadora Lígia Bahia não vê outra alternativa para a saúde pública no Brasil a não ser a “desprivatização” do setor. A estudiosa reconhece os esforços do governo Lula para retomar projetos praticamente destruídos por seus antecessores, como o Programa Nacional de Imunização, mas afirma que os avanços estão muito aquém da necessidade da população. Na entrevista a seguir, Bahia defende o fortalecimento do SUS a partir de financiamento que priorize uma saúde pública mais igualitária, a partir de programas como o ­Agora Tem Especialistas, recém-lançado pelo Ministério da Saúde. “A saúde, necessariamente, tem de ser política de Estado, não de governo. Entretanto, ela tem sido política de diversos governos, com interrupções. Precisamos caminhar para um sistema mais articulado ­público-privado, mais ‘desprivatizado’ e com maior controle de preços, que não estimulem a desigualdade social.” A pesquisadora ainda fala sobre o impacto da tecnologia no setor, da necessidade de quebra de patentes e defende para um eventual quarto governo Lula que o Ministério da Saúde não seja o único provedor.

CartaCapital: Como a senhora avalia a situação da saúde pública hoje no Brasil, os principais problemas e desafios?
Lígia Bahia: A realidade hoje é muito melhor do que durante o governo Bolsonaro, mas ainda é insuficiente diante das necessidades do País. Faltam ser cumpridas promessas de campanha do próprio presidente Lula, entre elas os 6% do PIB para a saúde pública. A gente vive uma situação um milhão de vezes melhor do que estava a partir do governo Temer, mas as demandas aumentaram ao longo desse tempo. A gente tem uma mudança do quadro epidemiológico, o Brasil era um País que se caracterizava pela predominância no enfrentamento de doenças infectocontagiosas, e agora não mais. Isso significa um desafio, porque a gente continua tendo doenças infecciosas, além de doenças crônicas. A gente ainda não encontrou um trilho para seguir adiante sem interrupção. Temos que definir prioridade, ninguém tem dúvida, mas quais são? Como a gente trata as prioridades e como levá-las adiante com maior fortalecimento da capacidade de coordenação, inclusive do Ministério da Saúde, numa perspectiva de futuro? A saúde, necessariamente, tem de ser política de Estado, não de governo. Entretanto, ela tem sido política de diversos governos, com interrupções, até mesmo considerando troca de ministros, como aconteceu nesse terceiro mandato do presidente Lula. Mesmo nos governos progressistas, a saúde nunca foi prioridade de fato.

É preciso uma “política de Estado, não de governo”

CC: Como a senhora vê o programa Agora Tem Especialistas, uma das novidades do governo Lula para a Saúde?
LB: Sou favorável, apesar de ser um programa polêmico. Espero que ele seja um trilho da “desprivatização”, de uma mobilização do setor privado para atender o público. Acho que esse pode ser um caminho interessante e promissor. Tem duas questões que são centrais no programa: as empresas aderirem e ele não ser interrompido.

CC: Considerando o caos na saúde a partir de 2016, potencializado com a pandemia de Covid–19, quais lições o Brasil tira dessa crise, que também é global?
LB: Na pandemia, as respostas foram bem diferentes entre os países. No nosso caso, como nos Estados Unidos, tivemos uma dimensão absurdamente macabra, tivemos um forte negacionismo nas políticas de saúde. A gente teve um garoto-propaganda da cloroquina, isso fez com que todas as possibilidades de combate à pandemia caíssem por terra.

CC: Uma das sequelas da pandemia é a negação à vacina, parte de um movimento global. Algumas doenças erradicadas voltaram a assustar o País. Como a senhora vê esse quadro?
LB: A vacinação no Brasil vinha decrescendo desde 2014 e a gente acompanhava isso com muita preocupação. A geração que viu a poliomielite não é a atual. Então, teria de ser feita uma grande campanha, uma grande mobilização, o que não aconteceu nem com Temer nem com Bolsonaro. Com a vitória de Lula, a vacinação foi uma prioridade, tanto que houve aumento das coberturas vacinais, mas não no nível necessário, não atingiu os patamares para dar tranquilidade. Não adianta ser só o ministro a andar com o Zé Gotinha, o serviço de saúde precisa funcionar perfeitamente, os horários serem favoráveis. A gente continua mais ou menos com os mesmos patamares de financiamento para o SUS, alguns governadores e prefeitos são de oposição, então a gente não tem, digamos assim, uma força nacional unânime em relação à vacina como teve no passado. Muitos se dão ao desplante de dizer “sou contra”. O ministro Alexandre Padilha e a ministra Nísia Trindade fizeram bem em levar a vacinação às escolas. Mas a gente tem uma força de oposição muito grande, que não havia antes, e isso exigiria ainda mais prioridade para a saúde.

CC: Sobre o aumento de doenças crônicas e o envelhecimento da população, o SUS está preparado para esse cenário?
LB: Nosso sistema não está preparado, mas podemos preparar, pois temos a sorte de ter o SUS. Isso significa que a gente tem possibilidades para ir adiante, porque o nosso sistema é universal e está na Constituição, diferentemente de outros países. Ainda não temos um financiamento adequado para ter um sistema de saúde universal e isso é um desafio que precisa ser encarado.

CC: Como chegar a um patamar satisfatório?
LB: A ideia do programa Agora Tem Especialistas, de trocar a dívida das empresas por serviços, de tentar, digamos assim, explicitar os serviços privados que não pagam impostos, é muito interessante. Acho que esse é o caminho, o caminho da “desprivatização”, pois temos um sistema de saúde extremamente privatizado. Tem uma apropriação dos fundos públicos pelo setor privado. A gente não pode ter um sistema de saúde público com 55% dos gastos destinados para o setor privado.

CC: Qual o impacto da tecnologia, em especial da Inteligência Artificial, na saúde pública?
LB: Na saúde, acho que não estamos nos preparando. Delegamos muito às empresas, ao setor privado. E as iniciativas que envolvem tecnologia relacionadas à saúde são muito pontuais. O setor privado domina essa área, quando, na realidade, isso deveria ser uma tarefa para as instituições públicas, de pesquisa, de desenvolvimento, de tecnologia. É claro que essa é uma questão vital, tínhamos de estar nessa fronteira tecnológica, ocupar espaço, mas com que condições? Isso deveria ser uma tendência futura, uma área de investimento prioritária, como previa o plano de transição do atual governo e não andou muito, ao contrário, andou de costas, para trás.

O envelhecimento da população e seus efeitos sobre o sistema de saúde merecem mais atenção – Imagem: Redes Sociais

CC: Com relação à indústria médica e à quebra de patentes, o que está por vir?
LB: As vacinas desenvolvidas pelo ­Butantan representam uma grande novidade para o Brasil, deveria ser algo muito interessante, mas em geral não é. Não temos soberania, somos dependentes de importação de medicamentos e vacinas. Essa dependência é cruel. A gente não tem propriedade intelectual e isso nos torna meros compradores, como aconteceu na pandemia. Não fomos o primeiro país a vacinar, nem o segundo, nem o terceiro. Se a gente tivesse vacinado, como a Inglaterra, a gente teria evitado muitas mortes.

CC: Não estaria na hora de o Brasil trabalhar para essa quebra de patentes?
LB: Sem dúvida, mas isso também tem sido uma política descontinuada. Temos de persistir na produção nacional. A gente precisa entrar em algumas áreas prioritárias, os imunobiológicos, as parcerias para desenvolvimento produtivo. Mas isso tem sido descontinuado. E no mesmo governo, o que é assustador. O caminho a seguir é o da ampliação da nossa capacidade produtiva, da base material, da base industrial. Temos, por exemplo, vários tipos de cânceres. Deveria ser uma área de investimento prioritário, de parcerias para desenvolvimento produtivo, estimular a produção nacional de medicamentos, de diagnósticos, de testes genéticos. Isso é fundamental, porque os cânceres vão ser o principal problema de saúde e precisamos estar preparados.

CC: Não seria o caso de também investir em saúde preventiva?
LB: Certamente. Mas o que é saúde preventiva para um câncer? É quebrar muitos ovos para fazer uma omelete, pois prevenir um câncer é não ter poluição atmosférica, não ter agrotóxico, não ter alimento ultraprocessado, ter cidades com calçadas, sem violência, ter trabalho digno, enfim, a prevenção é um conjunto de condições de bem-estar social.

“Não temos soberania, somos dependentes de importação de medicamentos e vacinas”

CC: A senhora lembrou que o presidente Lula, na campanha eleitoral, prometeu destinar 6% do orçamento para a Saúde, o que não aconteceu. Qual o modelo ideal na área da saúde, pensando em um eventual quarto governo Lula?
LB: Caminhamos para um modelo que o Ministério da Saúde não seja o único pagador. Não importa se o serviço será ofertado por um estabelecimento privado ou público. A tendência é substituir o atual modelo, muito desigual, porque os mais ricos têm acesso mais rápido a serviços. A gente precisa caminhar, para ter um sistema mais igualitário, com o Estado regulando. Uma vida não vale mais que a outra. Se a gente interna no Sírio-Libanês, cada internação custa quase 400 vezes mais do que quem se interna no SUS. O governo precisa caminhar para um sistema mais articulado público-privado, com maior controle de preços, que não signifiquem um estímulo à desigualdade social.

CC: Quais as inovações em termos de pesquisa científica que a senhora destacaria como mais promissoras para pensar um melhor sistema de saúde no Brasil?
LB: A gente tem milhares de estudos, da atenção básica aos tratamentos mais especializados. Não nos faltam estudos, o que falta é esses estudos deixarem de ser só reflexões. Estamos estudando o Agora Tem Especialistas e temos encontrado resultados interessantes, mas, por enquanto, ainda não é promissor em relação ao poder de atração dos estabelecimentos de melhor qualidade do setor privado. •

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Público, de fato’

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