CartaCapital
Presas fáceis
Divididos, os países da América Latina não conseguem oferecer resistência à pressão de Washington
Nas últimas semanas, a escalada retórica e militar da Casa Branca contra Caracas incluiu a chegada do maior porta-aviões do mundo no Mar do Caribe, a preparação de mais de 10 mil soldados, a volta dos treinamentos de mariners na selva do Panamá, o bombardeio de barcos que já deixaram mais de 80 mortos e a declaração de que Nicolás Maduro seria o chefe de um cartel agora designado como “grupo terrorista”. Com essa pressão inédita na região nos últimos 30 anos, Trump sinalizou a disposição de “conversar”, mas certamente seria um diálogo marcado por uma chantagem e ameaças sem precedentes.
O desafio não vem apenas, porém, do bullying norte-americano. O governo brasileiro estima que a ofensiva de Trump sobre a Venezuela ocorre num momento de profunda fragilidade da América Latina e num contexto no qual nem potências europeias ou de outras partes do mundo terão incentivos ou possibilidades para agir. O próprio presidente Lula alertou para o colapso dos processos de integração e a incapacidade de a região responder de forma coordenada às ameaças. “A América Latina e o Caribe vivem uma profunda crise em seu projeto de integração”, afirmou na cúpula da Celac, no começo do mês. “Voltamos a ser uma região balcanizada e dividida, mais voltada para fora do que para si própria.”
Segundo Lula, “a intolerância ganha força e vem impedindo que diferentes pontos de vista possam se sentar à mesma mesa”. Mais: “Projetos pessoais de apego ao poder solapam a democracia. Estamos deixando de cultivar nossa vocação de cooperação e permitindo que conflitos e disputas ideológicas se imponham. Como resultado, vivemos de reunião em reunião, repletas de ideias e iniciativas que muitas vezes não saem do papel. Nossas cúpulas se tornaram rituais vazios, dos quais se ausentam os principais líderes regionais”.
De fato, essa tem sido a realidade. Na reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, o racha na região impede que uma declaração sequer seja adotada contra as ameaças dos Estados Unidos na Venezuela. Na Organização dos Estados Americanos, a presença dos EUA e seus aliados tampouco permite um entendimento sobre a necessidade de garantir o princípio da não intervenção.
A Casa Branca conta com aliados na região, entre eles Javier Milei e Daniel Noboa
Em março, durante a posse presidencial de Yamandú Orsi, no Uruguai, Lula anunciou o interesse em reativar a Unasul. Os presidentes da Colômbia, Gustavo Petro, e do Chile, Gabriel Boric, juntamente com o novo líder uruguaio, apoiaram a iniciativa. Mas o projeto não decolou. Meses antes, em setembro de 2024, o presidente equatoriano, Daniel Noboa, ocupou o prédio que era a sede da Unasul e não fez questão de esconder seu desprezo pelo projeto. “Este lugar foi, até hoje, a personificação viva da incapacidade de impor uma ideologia e de negar a liberdade a cada indivíduo para decidir seus próprios objetivos, sonhos e ideais coletivos.”
No Mercosul, as diferenças políticas profundas entre o Brasil e a Argentina impedem uma resposta do único bloco que ainda sobrevive na região. O recente acordo entre Javier Milei e Trump ainda ameaça a espinha dorsal do projeto, iniciado nos anos 80 do século passado. Outra constatação interna no bloco é que o acordo abriria um precedente para que o Paraguai também busque uma flexibilidade nas regras e que forças empresariais no Uruguai pressionem na mesma direção.
O cálculo dos EUA ainda considera que, neste momento, não haveria nenhuma potência capaz de frear seus planos para a Venezuela, seja para forçar uma mudança de regime ou simplesmente obter amplo acesso ao petróleo do país. Nas capitais da Europa, Caracas não é uma prioridade. A União Europeia foca sua atenção na contínua ameaça de Moscou e no futuro da Ucrânia. Além disso, não estão dispostos a abrir mais uma frente de desentendimento com o governo norte-americano, sob o risco de ver a Casa Branca retaliar e criar algum tipo de dificuldade na defesa de Kiev.
Integrantes da equipe de Vladimir Putin têm feito declarações de apoio aos venezuelanos, tanto em Moscou quanto no Conselho de Segurança da ONU. Ainda que seu sistema de defesa aéreo seja usado por Maduro, o Kremlin não está em condições de desviar parte do arsenal ou de recursos para defender um aliado na América do Sul. A China, por sua vez, tem ampliado a relação comercial com os venezuelanos desde o momento em que Trump passou a pressionar Caracas. Mas não tem emitido qualquer sinal de que estaria disposta a defender de forma militar o governo de Maduro. O tom usado por Pequim recentemente mostra a aposta em um diálogo entre Washington e Moscou. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Mao Ning, declarou que o governo “se opõe a qualquer ação que viole a carta e os princípios das Nações Unidas e que infrinja a soberania e a segurança de outros países”. Pequim ainda pediu para os Estados Unidos “intensificarem seus esforços para promover a paz e a estabilidade na América Latina e no Caribe”.
O cenário regional e global, portanto, oferece aos estrategistas norte-americanos uma oportunidade única na Venezuela. Não só. O que ninguém consegue prever, porém, é o tamanho das consequências de uma ação bélica dos EUA no destino político da América Latina. •
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Presas fáceis’
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