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O jornalista terá direito à justa reparação na prática de seu ofício, como qualquer outro cidadão, seja quem for o ofensor

O presidente Jair Bolsonaro se estressou com pergunta de jornalista em Miami: "Não faça essa baixaria que a imprensa faz comigo". Foto: Alan Santos/PR
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Informação independente, baseada em evidências, é a força vital da sociedade. O jornalismo enriquece nossa compreensão de todo tipo de questões políticas, econômicas e sociais e ajuda a manter a governança, em todos os níveis, transparente, responsável e bem informada.  E este trabalho dos jornalistas é vital quando enfrentamos os desafios sem precedentes e multifacetados da epidemia de Covid-19”. Assim pronunciou-se a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, por ocasião do Prêmio Deutsche Welle 2020 de Liberdade de Expressão, em 30 de abril deste ano. A premiação buscou honrar jornalistas perseguidos e ameaçados em razão da cobertura da pandemia mundial.

O combate à crise sanitária foi transformado em pauta ideológica do governo Bolsonaro e evidencia a necropolítica por ele implementada, em que o prevalente obscurantismo faz de quem não queira morrer um “comunista” potencial, como afirmou Alexandre Kalil, prefeito de Belo Horizonte, ao El País, no último dia 17 de maio. Como resultado, o Brasil de hoje desponta como triste exemplo da chocante realidade referida por Bachelet em seu discurso, em que jornalistas estão sendo “atacados, ameaçados, presos, acusados de crimes que não cometeram e até mesmo desaparecem só porque informaram sobre a pandemia”.

O crescente aumento da desinformação como cortina de fumaça para a incompetência de alguns governantes mundiais no combate ao Sars-Cov-2 é tão nefasto, que a Organização Mundial da Saúde identificou esta “desinfodemia” como verdadeira “segunda enfermidade” que acompanha a pandemia, segundo o documento Periodismo, libertad de prensa y COVID-19, recém-publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO), por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

Nessa zona de guerra híbrida, a garantia e a reafirmação do direito humano fundamental ao acesso à informação são armas nas mãos de um fiel comando de combate rápido: o jornalismo livre e independente. Salva vidas.

Entre perdigotos virais e virulentos proferidos pelo presidente da República e a violência física praticada pela manada que o incensa, de um lado, e o dever de bem informar, de outro, encontra-se o jornalista profissional, alcançado em cheio pela pandemia. Não só em sua subjetividade no exercício dessa atividade pouco mencionada como essencial nestes tempos (ao lado de outros “heróis”, como os profissionais da saúde e os trabalhadores em logística e entregas rápidas), mas também pelas dimensões sanitárias e econômicas da crise.

Como exemplo da perversidade do modelo econômico instalado no Brasil desde o governo Temer, a crise sanitária deu azo ao aprofundamento das desigualdades sociais já vivenciadas, servindo de justificativa para uma nova onda de flexibilização e precarização dos direitos individuais e coletivos das pessoas trabalhadoras.

O próprio Supremo Tribunal Federal relativizou direitos constitucionais trabalhistas, como nos julgamentos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 6.342 e 6.363, nos quais declarou a constitucionalidade das Medidas Provisórias nºs 927 e 936/2020, mesmo que em ofensa à inafastabilidade dos sindicatos nas negociações relacionadas com a redução proporcional de salário e jornada de trabalho.  Neste caso, o jornalista profissional é tão vítima quanto toda a classe trabalhadora.

Em reportagem intitulada Jornalistas arriscam a vida na crise do coronavírus em meio a demissões, cortes de salário e agressões do presidente (agência Pública, 11 de maio de 2020), as jornalistas Alice Maciel e Julia Dolce honraram o jornalismo investigativo com importante relato sobre os impactos sofridos por seus colegas de trincheira — e, certamente, sentidos na própria pele:

No front da batalha contra a desinformação, jornalistas, cinegrafistas e radialistas enfrentam condições de trabalho difíceis, ditadas pelo risco de contágio e pelo isolamento social e, ainda, suspensões de contratos e cortes de salário em todo o Brasil”.

Para além do inquestionável risco inerente ao exercício do jornalismo, realizado no cotidiano muitas vezes violento a que seus profissionais já se submetiam e passaram a estar expostos como nefasto elemento ideológico, a pandemia, cuja única medida eficiente de contenção conhecida é o isolamento social, agregou-lhe o risco sanitário. Redações superlotadas, deficiente distribuição de equipamentos de proteção individual, exposição pública e muitas vezes em situação de grande aglomeração fazem com que a categoria figure como vetor privilegiado do vírus.

Quanto às violações à integridade física, moral ou à imagem, o jornalista terá direito à justa reparação na prática de seu ofício, como qualquer outro cidadão e seja quem for o ofensor (Constituição, arts. 5º, incisos V e X, e 37, § 6º, e Código Civil, arts. 186, 187 e 927).  Exposto ao assédio ou ao adoecimento, sem que o empreendimento lhe proporcione as necessárias condições de segurança e higiene, depois do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 828.040, já não há muito a se dizer: o trabalhador que atua em atividade de risco tem direito à indenização em razão de danos dela decorrentes, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do empregador. Crimes perpetrados contra à imprensa, por sua vez, seja qual for sua natureza, não podem e não devem ser tolerados. As autoridades públicas deverão ser devidamente notificadas e os casos processados, como demanda a sistemática penal.

Nesse sentido, vale a citação ao relatório Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, anualmente emitido pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ). Já em sua versão do ano de 2019, ainda em situação de relativa “normalidade”, o relatório dava conta de que a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República degradou a liberdade de imprensa no Brasil, quando o número de casos de ataques a veículos de comunicação e a jornalistas chegou a 208, aumento de 54,07% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 135 ocorrências.

Nesses momentos difíceis, portanto, o jornalista profissional deve imbuir-se da utilidade pública dos seus serviços, exercendo-os com altivez e independência, sendo certo que um ataque às suas prerrogativas representará violação ao direito humano fundamental ao acesso à informação, inscrito no art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Não por outro motivo, Jornalismo Imparcial e Sem Medo foi escolhido pela UNESCO como tema do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa neste ano de 2020, celebrado no dia 3 de maio, e deverá ser o mote para o jornalismo profissional no incerto futuro que se avizinha.  Sendo certo que, sempre que necessário, as entidades de representação profissional combaterão o bom combate na defesa dessas suas prerrogativas.

Obs.: enquanto organizava as referências deste artigo, veio-me a notícia de que importantes meios de comunicação abandonaram a cobertura diante do Alvorada, por questões de segurança. No “curralzinho” destinado à imprensa restará apenas a ruidosa claque presidencial.

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