Política

Fundos de Pensão, a criptonita do superministro Guedes?

Às vésperas da posse do novo governo, a Polícia Federal entra na investigação contra o economista por suspeita de gestão temerária

(EVARISTO SA / AFP)
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Sérgio Moro, em breve ministro da Justiça, atravessou o Atlântico e foi palestrar em Madri sobre o que será o governo Jair Bolsonaro, em um seminário promovido na segunda-feira 3 pelo instituto de um conhecido escritor e político direitista e neoliberal peruano, Mario Vargas Llosa. O ex-juiz deveria ter ao lado um futuro colega de primeiro escalão, Paulo Guedes, mas aquele que será o superministro da Economia foi acometido por uma infecção viral.

Uma infecção providencial para os dois bolsonaristas. Moro, que se encarregou de aconselhar o presidente eleito sobre demitir ministro enrascado, não precisou se sentar junto de um investigado. E Guedes, o investigado em questão, pôde adiar um depoimento que daria na quarta-feira 5 ao Ministério Público Federal.

O economista entrou na mira do MPF no início de outubro. O motivo? Possível crime contra o sistema financeiro de sua parte, uma pessoa que fez fortuna no mundo das finanças.

A Polícia Federal acaba de abrir um inquérito e vai ajudar nas investigações. PF que, registre-se, estará sob a batuta de Moro, responsável por escolher para comandar a corporação o delegado Mauricio Valeixo, atual chefe dos federais no Paraná.

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A Receita Federal prepara uma análise fiscal detalhada de Guedes e suas empresas. Não era um desconforto esperado por Bolsonaro às vésperas da posse. Guedes será um dos esteios de seu governo, e é graças ao neoliberalismo radical do Chicago Boy que o dito “mercado” deposita seu otimismo em relação ao ex-capitão. Não é, porém, o fim do mundo. Afinal, alguns dos órgãos que colaboram com as apurações logo estarão sob controle do próprio superministro-alvo.

O carioca de 69 anos virou alvo devido a um enredo complexo, coisa típica do sistema financeiro. Tudo começa em 2009. Naquele ano, uma empresa dele, a BR Educacional Gestora de Recursos, criou um fundo de investimento para caçar oportunidades de lucro através da injeção de capital em empresas promissoras da área de educação.

Esse fundo, o FIP BR Educacional, foi montado basicamente com grana de fundos de pensão de funcionários de estatais. Botaram dinheiro nele, na condição de cotistas, a Previ, do Banco do Brasil, a Petros, da Petrobras, a Funcef, da Caixa Econômica Federal, e o Postalis, dos Correios, entre outros. O BNDESPar, braço do BNDES para o comércio de papéis, também entrou. A promessa dos cotistas era aplicar 400 milhões de reais em quatro anos.

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O problema para Guedes está em um determinado uso da verba dos cotistas. O FIP jogou fichas em uma empresa que dava prejuízo e estava meio paralisada, a HSM do Brasil. E pagou um valor alto demais pelas ações dela. Por que agiu assim? Guedes aparece em diferentes fases do negócio. Era gestor do fundo, portanto, da verba. Era conselheiro da empresa onde parte da verba foi aplicada, a HSM do Brasil.

Era colaborador das Organizações Globo, controladora indireta da HSM do Brasil. E era conselheiro da Gaec Educacional, hoje Ânima, empresa com a qual o FIP trocaria ações da HSM do Brasil em condições vantajosas demais para a Ânima e de menos para o FIP. Tudo somado, um prejuízo potencial de 16 milhões de reais ao FIP, conforme estimativas preliminares da Previc, o órgão federal que supervisiona os fundos de pensão. Detalhe: a Previc é vinculada ao ministro da Fazenda, cargo à espera de Guedes.

O economista é investigado por gestão fraudulenta ou temerária de instituição financeira (o FIP) e pela emissão ou comércio de papéis sem lastro. São delitos previstos na lei de crimes contra o sistema financeiro, a 7.492, de 1986. Quem os comete pode ser condenado de 2 a 12 anos de cadeia.

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A investigação nasceu na Operação Greenfield, força-tarefa de procuradores e policiais federais que desde setembro de 2016 olha com lupa os fundos de pensão. Alguns figurões políticos já foram acusados à Justiça em virtude da Greenfield. Em outubro, aconteceu com os ex-deputados do MDB Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima e Henrique Alves, e com o doleiro Lúcio Funaro. A força-tarefa deveria ser encerrada dia 31, mas na terça-feira 4 ganhou mais um ano de vida.

Diante do volume de trabalho e do foco em histórias a envolver emedebistas e petistas, não se sabe ao certo como foi que a Greenfield descobriu o caso de Guedes, nem por que resolveu prestar atenção nele. O fato é que, em 18 de setembro, a força-tarefa requisitou à Previc uma análise do FIP BR Educacional, aquele criado pela empresa de Guedes. Em 1o de outubro, a Previc enviou ao MPF uma nota técnica preliminar, a apontar algumas estranhezas e a recomendar o aprofundamento da análise.

O assunto será objeto agora de uma auditoria pela diretoria de Fiscalização da Previc, ou seja, passará por um exame mais minucioso. A auditoria determinará se houve irregularidade na gestão do FIP e de quem foi a culpa, conclusões capazes de embasar ações na esfera criminal. Não deve demorar para terminar, conforme apurou CartaCapital.

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Entre os estranhamentos apontados inicialmente pela Previc está o pagamento de uma generosa taxa de administração dos cotistas do FIP, ou seja, dos fundos de pensão, à empresa de Guedes, gestora da grana. Combinou-se 1,75% do valor que os cotistas prometiam aplicar no fundo, não daquilo que efetivamente aplicariam (em geral, a promessa é maior do que a realidade). Quando o FIP foi criado, tinha 75 milhões de reais de patrimônio líquido, dos quais 80% tinham sido injetados por fundos de pensão. De cara, o FIP gastou 62,5 milhões de reais na compra de 99,99% do Grupo HSM, de dentro do qual sairia, posteriormente, a HMS do Brasil. Era um bom negócio?

De 2010 a 2012, diz o documento da Previc, a HSM do Brasil acumulou prejuízos de 23 milhões de reais, daí seu patrimônio líquido de 62 milhões ter baixado a 39 milhões. O balanço de 2011 do FIP admitia que poderia haver problemas com a empresa na qual tinha apostado. O documento dizia conter “um parágrafo de ênfase quanto à incerteza da continuidade das operações” da HSM. Em 2012, o balanço da própria HSM mostrava um cenário pior. Sua divisão “HSM do Brasil” tinha dívidas de 16 milhões e patrimônio líquido negativo de 9 milhões. “Essa situação”, segundo o balanço, “suscita dúvida substancial quanto à continuidade operacional” da HSM do Brasil.

Em março de 2013, o FIP, aquele fundo criado e gerido pela empresa de Guedes, resolveu sair da HSM do Brasil. Faria isso ao trocar ações que tinha nela por ações de outra companhia, a Gaec Educação, hoje em dia Ânima. Como a HSM do Brasil era uma empresa fechada, sem ações negociadas em Bolsa, não havia um preço conhecido, fixado no mercado, para estas ações. Foi preciso contratar um laudo para calcular o valor.

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O preço foi definido em 570 reais por papel. Só que, um ano antes, em abril de 2012, o FIP tinha comprado ações da Gaec e pago menos da metade, 217 reais por unidade. “O resultado líquido do investimento do FIP”, diz a nota técnica da Previc, “foi negativo em 16 milhões de reais”.

Registre-se: 16 milhões era o valor acumulado em dívidas pela HSM do Brasil no ano anterior.

Gestor de fundo de investimento é uma bússola para os cotistas. É ele quem fareja oportunidades no mercado e recomenda onde aplicar o dinheiro. Por que o fundo criado por Guedes decidiu apostar na HSM do Brasil, que não parecia promissora em 2009, 2010? Foi para ajudar os amigos? Quem estava na HSM do Brasil juntamente com o FIP de Guedes era o grupo gaúcho de comunicação RBS.

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A família Sirotski, dona da RBS, era e é apoiadora do Instituto Millenium, think tank direitista do qual Guedes é um dos fundadores. Outra na HSM do Brasil naquela época era a Geo Eventos, uma sociedade entre as Organizações Globo e a RBS. Guedes era na ocasião – e foi até este ano – colunista da revista Época e do jornal O Globo, ambas publicações globais. Em uma nota ao Estadão nos últimos dias, a atual direção do Grupo HSM comentou: “Todas as questões mencionadas na reportagem são relativas a datas anteriores, em período que a HSM possuía como sócios a Geo Eventos e RBS, instituições ligadas às Organizações Globo”.

Não será fácil para Guedes se livrar da investigação sem ao menos se aborrecer. Um dia após receber a nota preliminar da Previc, o chefe da força-tarefa da Greenfield, o procurador Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, abriu a investigação sobre o economista e disparou requisições a vários órgãos. Pediu, por exemplo, à Receita Federal uma análise fiscal de Guedes e das empresas dele. No governo Bolsonaro, o Leão será comandado por um indicado de Guedes, o economista Marcos Cintra.

À Comissão de Valores Mobiliários (CVM), outro órgão que ficará sob o guarda-chuva do superministro da Economia, Lopes pediu uma análise das operações do FIP. Aos fundos de pensão, cotistas do FIP, solicitou todos os documentos que respaldaram decisões de investimentos neste assunto. E à Previc, outro órgão da seara do superministro, que houvesse um aprofundamento da análise preliminar feita na nota técnica.

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Para quem Bolsonaro bate continência (Foto: Marcelo Camargo/ABr)

Os advogados de Guedes chamam o documento preliminar da Previc de “manifestamente mentiroso” e “irregular”, mas, procurados pela reportagem, não explicaram o motivo do ataque. Duas semanas após a nota ser enviada ao procurador Lopes, o autor dela, o auditor-fiscal Marcelo Freitas Toledo de Melo, foi demitido do cargo de chefe da coordenação de monitoramento da Previc. Retaliação? O procurador cobrou explicações do órgão. Aparentemente, foi uma decisão administrativa. Designado em julho para colaborar por um ano com a força-tarefa da Greenfield, Melo segue na cooperação. Seu substituto no cargo que perdeu é outro colaborador da força-tarefa, Felipe Slavori Martins.

Em nota pública, os advogados de Guedes dizem ainda que “não houve, ao longo da operação, qualquer conduta antiética ou irregular por parte de Paulo Guedes, cuja reputação jamais foi questionada e é amplamente reconhecida no Brasil e no exterior”. Em 2005, Guedes e mais oito pessoas foram acusados, na CVM, de ganhar uma grana com o uso de informação privilegiada, o equivalente a 1,9 milhão de reais.

Seu irmão, Gustavo Henrique Guedes, estava entre os acusados. Ele admitiu à CVM ter se valido de informação privilegiada, mas disse que seu irmão não sabia de nada.

Foi condenado pela CVM em 2007. Mas não pode se queixar. Tomou uma advertência e só. Um irmão superministro da Economia pode ser uma boa fonte de informação privilegiada, não é mesmo? Detalhe: Paulo e ele são sócios. Por exemplo, na BR Educacional Gestora de Recursos, aquela que tomou conta do fundo de investimento cujos negócios estão sob investigação da Previc.

Portador da visão de que vender estatais é uma forma de combater a corrupção, pois o setor privado tem superioridade ética, Guedes tem nas cercanias mais gente enrolada. Ou ao menos tinha até recentemente. O preposto de um sócio do economista é processado na Justiça, desde julho, por formação de quadrilha, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e corrupção, em decorrência da Operação Câmbio, Desligo, que desmontou uma megarrede de doleiros. Oswaldo Prado Sanches, o processado em questão, teria providenciado 15,5 milhões de dólares à rede entre 2011 e 2016. A origem do dinheiro era o Grupo Bozano, cujo dono, o bilionário gaúcho Júlio Bozano, tinha Sanches como seu braço direito há anos.

Na acusação, o MP diz que Sanches arranjava dólares para o esquema em uma conta de Júlio em Nova York no banco Morgan Stanley. Guedes tornou-se sócio de Júlio Bozano em 2013, na Bozano Investimentos. Ou seja, parte das alegadas estripulias de Sanches aconteceu com o futuro superministro ali do lado. Após a eleição de Bolsonaro, Guedes anunciou que deixará de ser sócio do empresário gaúcho.

O deputado federal e outros nove políticos tiveram nomes citados por delatores da JBS

Guedes não é o único futuro ministro de Bolsonaro na mira de investigação. Onyx Lorenzoni, indicado para comandar a poderosa Casa Civil, é outro. Na segunda-feira 3, o juiz Edson Fachin, do STF, autorizou a abertura de um inquérito sobre caixa 2 contra ele. A apuração tinha sido pedida no fim de novembro pela “xerife” Raquel Dodge. Deputado gaúcho pelo DEM, Lorenzoni foi citado em delação do criminoso confesso Ricardo Saud, da JBS/Friboi, como recebedor de 200 mil reais “por fora”. Metade teria sido dada em 2012, eleição em que Lorenzoni não concorreu a nada, e a outra metade na campanha de 2014, em que se reelegeu.

Quando a delação veio à tona, em maio de 2017, o parlamentar admitiu ter usado 100 mil reais da JBS para pagar dívidas de campanha em 2014. E comentou: “Quero pedir desculpas ao eleitor que confia em mim pelo erro cometido”. Sobre 2012, ele negava. Em meados de novembro, a Folha revelou que uma planilha da JBS mostra os tais 100 mil de 2012, que o deputado continua a negar ter recebido.

Lorenzoni é outro embaraço para Sérgio Moro. Ao aceitar ser ministro da Justiça, o ex-juiz foi questionado a respeito do caso do deputado gaúcho e respondeu, em uma entrevista coletiva: “Ele mesmo admitiu os seus erros, pediu desculpas e tomou as providências para repará-los”. Uma declaração curiosa para um juiz que, em palestra em Harvard em 2017, dizia que “caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia (…) é pior que desvio de recursos para o enriquecimento ilícito”.

Um dia após Fachin ter autorizado a investigação de Lorenzoni pela PGR, Moro deu outra entrevista coletiva e afirmou ter “confiança pessoal” no colega de equipe bolsonarista. O presidente eleito é menos entusiasmado. Em 14 de novembro, disse, a propósito da situação de Lorenzoni, que confiar 100%, só na mãe e no pai. Na quarta-feira 5, afirmou que, em caso de “denúncia robusta”, usará sua “caneta Bic” contra qualquer membro de seu governo.

Conterrâneo e crítico de Moro, o senador Roberto Requião, do MDB do Paraná, aproveitou o caso Lorenzoni para concluir o mandato com uma proposta irônica. Apresentou uma “Lei Lorenzoni” para alterar a lei das organizações criminosas, a 12.850, de 2013, e incluir no texto a possibilidade de “perdão judicial” para acusados que se mostrarem arrependidos, confessarem o malfeito e pedirem desculpas públicas.

E emendou: “Creio, ainda, que as mesmas vantagens, privilégios e prerrogativas ao perdão devem ser estendidas aos crimes contra a administração pública e contra o sistema financeiro. E por quê? A razão é simples: para poder estender o perdão a Paulo Guedes, futuro ministro da Fazenda”.

Diante dos embaraços dos auxiliares, Bolsonaro tem tido a postura de falar pouco e não botar a mão no fogo por ninguém. Na terça-feira 4, disse em público, a propósito de Lorenzoni, que “nada preocupa” e, no dia seguinte, meio aborrecido por ter de voltar ao tema, afirmou que “em havendo qualquer comprovação obviamente ou uma denúncia robusta contra quem quer que seja do meu governo que esteja ao alcance da minha caneta ‘Bic’, ela será usada”, disse.

No sábado 1º, no Rio, foi mais seco em relação ao “Posto Ipiranga”: “Desconheço investigação sobre Paulo Guedes. Eu integro o Poder Legislativo e integrarei o Executivo. Isso compete ao Judiciário”.

No outro “poder”, talvez o mais poderoso de todos, o “mercado”, reduto de fãs do Chicago Boy, enquanto o embaraço de Paulo Guedes parece preocupar. O economista-chefe de uma empresa paulista do setor diz que “ninguém dá bola” para o caso, e o analista político em Brasília de outra firma do ramo conta coisa parecida: “Ninguém está preocupado com isso. É investigação, muito inicial”.

Outro analista do “mercado”, desses que passam o dia no telefone a explicar o Brasil para brasileiros e estrangeiros, relata uma experiência diferente. “Preocupa demais. Todo dia vem questionamento sobre em que pé estão as investigações sobre o Paulo Guedes, e se ele corre o risco de constrangimento político que o leve a deixar o cargo. Hoje mesmo tive uma conference call com um cliente cuja única preocupação era essa.”

Vaidoso, conhecido dono de pavio curto, como será que o “Posto Ipiranga”, o homem encarregado de tirar o País do lamentável ritmo de crescimento de 1% ao ano, chegará à posse em 1o de janeiro, diante do embaraço? A conferir.

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