Artigo

assine e leia

Pane democrática

A questão de “quem guarda os guardiões” – ou seja, de como subordinar os meios de violência do Estado ao controle político civil – é conhecida desde os tempos de Platão. Essa pergunta se impõe na vida pública brasileira desde o período colonial, mas sob […]

Pane democrática
Pane democrática
Os golpes não vêm mais como ensanguentados momentos decisivos, mas na forma da “tática do salame“, consumado gradativamente em mil fatias fininhas
Apoie Siga-nos no

A questão de “quem guarda os guardiões” – ou seja, de como subordinar os meios de violência do Estado ao controle político civil – é conhecida desde os tempos de Platão. Essa pergunta se impõe na vida pública brasileira desde o período colonial, mas sob o governo Bolsonaro ganhou urgência e agudez inéditas na era democrática. Um olhar comparativo internacional, usando critérios objetivos, demonstra claramente quanto o Brasil se afastou dos padrões democráticos de controle civil das Forças Armadas nos últimos três anos.

O dilema fundamental é que o Estado precisa de Forças Armadas para sua defesa externa, mas a força – ou mesmo a sua ameaça – não pode se impor sobre a deliberação participativa que define a democracia. No fundo, trata-se de um embate entre duas culturas. Na cultura interna de uma força armada, legitimidade e poder têm sua fonte na hierarquia e na disciplina, a discordância não é tolerada. Essa visão combina legitimamente com a função militar: no meio do combate, numa trincheira ou numa corveta, submeter cada ordem a um debate estendido seria fatal. Na cultura democrática, baseada na deliberação, na participação (ou representatividade) e na transparência, é não o fazer que se revela fatal.

A democracia não permite a existência de âmbitos separados isentos dos seus princípios basilares. Como reconciliar, então, essas duas culturas necessárias? As democracias consolidadas adotam um modelo que organiza as Forças Armadas segundo os próprios requisitos internos, mas delimita claramente esse âmbito e o subordina firmemente ao controle de líderes civis, cuja legitimidade emana da escolha livre do povo. Ou seja, existe uma forma universalmente aceita de reconciliar as culturas militar e civil numa democracia. Dessa forma, a suposta tensão entre democracia e Forças Armadas torna-se uma falsa dicotomia: se é uma democracia, prevalece o controle civil. Se há uma dicotomia ou uma tensão, não se trata de uma democracia.

KAI MICHAEL KENKEL:Mestre e doutor pelo Institut Universitaire de Hautes Études Internationales de Genebra, é professor associado do Instituto de Relações Internacionais e coordenador do Núcleo Democracia e Forças Armadas da PUC Rio.

Os golpes não vêm mais como ensanguentados momentos decisivos, mas na forma da “tática do salame”, acabado por mil fatias fininhas: gradativamente, sorrateiramente, e às vezes até a convite dos próprios civis. Assim, a democracia e o controle civil são questões de grau, portanto, décadas de estudos nos deixaram com indicadores muito claros da sua qualidade. Três tipos de critério são os mais imperativos: os formais, que lidam com os arranjos institucionais; os normativos, que mostram quem está ganhando de fato o embate de valores; e os discursivos, que ilustram de que forma se narram a história e a identidade da nação. É nesses critérios, na sua comparação com democracias consolidadas, que se revela o retrocesso democrático acarretado pelo governo Bolsonaro.

Dentre muitos, quatro elementos institucionais são fundamentais para a manutenção de Forças Armadas democráticas. O primeiro é um Ministério de Defesa sob controle civil. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a cumprir esse passo: demorou 15 anos após o fim da ditadura para fazê-lo, superando forte resistência fardada. Contrariando seu propósito no modelo das democracias consolidadas, o Ministério da Defesa brasileiro foi ocupado, desde a sua criação, por uma significativa maioria de militares da ativa. Mais divergente ainda do padrão internacional, sob Bolsonaro, o cargo de ministro foi exercido por dois generais que haviam ido muito recentemente para a reserva. Embora na América do Sul essa prática possa existir esporadicamente, nas democracias consolidadas os ministros (e ministras!) são civis. Nos raros casos onde se nomeia um ex-militar de carreira, países como os EUA exigem um hiato de sete anos para garantir a autonomia do nomeado diante dos interesses corporativos castrenses.

Se, na democracia, o posto de ministro da Defesa se exerce por um civil, a nomeação de militares da ativa ou que foram para a reserva recentemente para chefiar pastas civis é igualmente considerada um grave retrocesso no controle democrático. Bolsonaro nomeou não menos que sete militares de carreira para postos civis no seu gabinete desde 2019; o ápice veio com a imperícia mortífera do general de divisão da ativa Eduardo Pazuello como titular da Saúde, no lugar de profissionais médicos, em tempos pandêmicos. Para agravar ainda mais o quadro, num movimento inédito nessa escala em outros países de regime democrático, no governo Bolsonaro, mais de 6 mil militares, da ativa ou da reserva, ocupam cargos discricionários na administração federal.

Mas por que o padrão democrático se opõe à nomeação de militares para postos civis? Uma parte da resposta reside no isolamento da esfera militar da sociedade civil e, assim, dos seus valores. Democracias consolidadas enxergam na falta de espaços de contato cotidiano entre seus soldados e a população civil, com suas normas e valores – através de sistemas judiciários e administrativos em comum, escolas civis compartilhadas, ou atividades sociais e de lazer –, uma potencial ameaça para a sua integração na democracia. Enxerga-se, nesse padrão, que o risco de nomear um militar para um cargo de chefia na democracia é que ele pode ter feito a sua formação inteira unicamente dentro do estamento militar.

A NOMEAÇÃO DE MILITARES PARA A CHEFIA DE CARGOS CIVIS REPRESENTA UM GRAVE RETROCESSO

Essa formação pode ter grande qualidade técnica, mas não está voltada, como a sua homóloga civil, à transmissão de valores da cultura cotidiana democrática, baseada na discordância construtiva, na crítica livre, na tomada de decisão participativa e na primazia civil. O isolamento da convivência cotidiana civil foi visto, no momento do restabelecimento das Forças Armadas da Alemanha Ocidental, em 1955, como extremamente nocivo e, de fato, como uma das condições permissivas do Holocausto presentes da sociedade alemã. A integração moral dos militares na sociedade democrática através do princípio da Innere Führung (liderança interna) tornou-se requisito incontornável para a renovada existência de Forças Armadas sob a bandeira alemã. A crítica não é à cultura institucional militar, mas ao seu isolamento daquela civil.

Uma manifestação de limitada experiência democrática é a afirmação de que a discordância entre os poderes constitui uma crise que justificaria uma intervenção militar para “restabelecer a ordem”. Quem foi socializado na democracia sabe que tal discordância é tanto condição sine qua non quanto propriamente um indicativo do seu bom funcionamento. A Constituição Brasileira de 1988 – assim como todas as leis básicas democráticas modernas – em momento algum respalda a existência de um “poder moderador”, que colocaria as Forças Armadas acima das autoridades civis dos três Poderes e consagraria o uso de força como razão de Estado.

Numa democracia, as Forças Armadas são um órgão de implementação subordinado a um ministério do Poder Executivo civil e não possuem função de árbitros da Constituição. No padrão internacional, o mero fato de permitir que pairem dúvidas sobre o uso da força no contexto político ou eleitoral já constitui em si uma pane democrática severa. Serve de exemplo o extremo constrangimento do alto comando militar estadunidense quando Donald Trump cogitou do uso político das tropas nos últimos dias do seu mandato.

Nas democracias consolidadas, as Forças Armadas, além de não entrarem diretamente na política, não manifestam institucionalmente preferências políticas. Isso, porque internalizaram a noção de que o controle civil não é uma questão de orientação política, de esquerda ou direita, ou de orientação antimilitarista, mas de compromisso com o regime democrático. Dessa forma, a Alemanha, em 2020, não hesitou em dissolver uma companhia prestigiosa das suas forças especiais ao constatar fortes associações de seus integrantes com a extrema-direita antidemocrática. Em 1995, o Canadá dissolveu seu regimento paraquedista de elite ao constatar graves infrações contra o código de conduta.

O general Pazuello contribuiu para o desastre. Nos EUA, os militares resistiram às investidas de Trump

Não bastam as instituições meramente funcionarem, o discurso também é crucial. O ponto central é que o papel legítimo de determinar a narrativa histórica da nação decorre da representatividade democrática, e não da força das armas. As Forças Armadas nas democracias consolidadas não buscam influenciar em seu favor a narrativa histórica e a identidade da nação. É nesse âmbito justamente que Bolsonaro teve um de seus efeitos mais nefastos. Seu apoio público a figuras e práticas ligadas à tortura e às violações de direitos humanos no regime militar são um ataque direto à construção democrática da narrativa histórica nacional.

Um exemplo comparativo: os enfrentamentos do legado do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial são elementos fundamentais do entendimento moderno de identidade dos alemães, e quase 80 anos depois permanece pedra basilar do consenso democrático no país. A submissão da sua história ao debate e ao escrutínio públicos fortaleceu determinantemente a legitimidade das instituições do Estado alemão, inclusive das suas Forças Armadas, perante a sociedade nacional e internacional. No Brasil, a interação no máximo superficial das Forças Armadas com a Comissão Nacional da Verdade previsivelmente teve o efeito contrário. A aguda preocupação dos militares com a sua imagem perante a sociedade, e com a difusão da sua versão de determinados eventos por meio de “notas de esclarecimento”, paradoxalmente revela a fragilidade discursiva institucional legada por um capítulo ainda não fechado da história nacional.

O conjunto de fatores acima, apresentados em comparação com democracias consolidadas, deixa claro como o governo Bolsonaro enfraqueceu nitidamente o quadro já precário do controle civil no Brasil, e em que medida tal fenômeno põe em risco elementos basilares do nosso sistema político. A democracia é um ser vivo que precisa ser defendido e renovado a cada dia, e cabe a cada um sua defesa, contra cada uma das mil fatias fininhas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: PEDRO LADEIRA/FOLHAPRESS, REDES SOCIAIS E ALEXANDRE SCHNEIDER/GETTY IMAGES/AFP – CAIO DE BIASI/MS E TRUMP ARCHIVE/THE WHITE HOUSE

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo