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Em livro, Mandetta expõe entranhas do governo de Jair Bolsonaro

Ex-ministro da Saúde descreve em livro sua experiência ao lado do presidente no início da crise do coronavírus no Brasil

Bolsonaro e Mandetta
Foto: Mateus Bonomi/AFP Segundo ex-ministro, Bolsonaro era incapaz de entender conceitos básicos. Mateus Bonomi/AFP
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“Sempre que eu ia ao gabinete dele, em cima da mesa havia caixas de cloroquina. Nunca tinha máscaras de proteção ou álcool em gel, mas a cloroquina estava lá”. A cena parece banal. Mas é alegoria de um turbilhão de crises, dramas e mortes enfrentado pelo Brasil desde a chegada do coronavírus. E o dono do gabinete é o presidente Jair Bolsonaro. Quem conta é o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta em um recém-lançado livro de memórias de seu período à frente da pasta.

Escrito durante uma quarentena imposta pelas regras do setor público, Um Paciente Chamado Brasil (Editora Objetiva. 228 págs,. R$ 49,49) inicia no Fórum de Davos, quando a pandemia começa a entrar na agenda internacional. E termina em abril, com a coletiva de despedida do ministro e seu retorno com a mulher ao Mato Grosso do Sul. Embora até o reino mineral saiba que Bolsonaro negou a gravidade da crise e boicotou sistematicamente o isolamento social, a obra traz bastidores detalhados sob a pena de um dos personagens mais importantes dessa trama.

Logo no preâmbulo, Mandetta admite que, entre os milhões de votos que Bolsonaro amealhou em 2018, contou com o seu. A decisão, segundo ele, se deu por exclusão: não votaria em Alckmin, não achou que Amoedo fosse viável e “não iria votar no PT em hipótese alguma”. Sobrou então, Bolsonaro. Entre um primeiro ano longe dos holofotes e a chegada de uma pandemia, a relação entre presidente e ministro azedou conforme se agravava a crise.

 

Mandetta descreve tentativas infrutíferas de explicar o tamanho do problema a Bolsonaro. Segundo escreve, o presidente nunca viu os números do Ministério da Saúde e se recusava a sentar com ele para discutir o assunto (“Era sempre ‘agora não dá’, ‘outra hora você passa’.”). Diz também que tentava explicar tudo em linguajar mais simples. “Se você falar em um linguajar normal ele não demonstra interesse, não dá atenção”.

Bolsonaro, conta, se baseava apenas nas opiniões dos filhos e de seu entorno. Acreditava na teoria de que a China tinha inventado a pandemia, e que o embaixador chinês Yang Wanming estava aqui para derrubá-lo. Wanming seria, inclusive, o artífice dos protestos contra o presidente Sebastián Piñera no Chile e da derrota eleitoral de Mauricio Macri na Argentina. O coronavírus seria, portanto, parte desse plano, mais tarde reforçado por governadores.

O ex-capitão, conta Mandetta, achava que o embaixador da China queria derrubá-lo do poder com a Covid-19

Ao longo dos meses, o presidente incorporou a opinião de médicos pró-cloroquina, como a imunologista Nise Yamaguchi. A obsessão com o remédio não tinha nenhum pano de fundo conspiratório. A questão, segundo Mandetta, era muito simples. Com o medicamento na mão, os brasileiros abandonariam o fim do isolamento social. Além disso, ele acreditava que o coronavírus só mataria os idosos, de 80 ou 90 anos. A realidade é outra: as pesquisas mais balizadas com a cloroquina não mostraram qualquer eficácia contra a Covid-19. E apenas um quarto dos mais de 140 mil mortos pela doença no Brasil tinha mais de 80 anos. 

A julgar pelo que diz Mandetta, a postura omissa do capitão contaminou o governo. Um dos que aparecem no livro recusando-se a enfrentar o problema é o ministro da Economia, Paulo Guedes, que esbravejou contra o tabelamento de preços de certos remédios em uma reunião com a equipe da Saúde. Sobre ele, Mandetta escreve: “É um economista afeito aos números, às teorias, mas não conhece gente, não conhece povo, não conhece rua, não conhece o chão, não conhece o SUS, não conhece política social”.

Cemitério Brasil, com mais de 140 mil mortes, só fica atrás os EUA na pandemia. Foto: Nelson Almeida/AFP

Ao longo dos capítulos, o ex-ministro não esconde as tentativas de antagonizar com o presidente. Como quando, em entrevista ao Fantástico, da Rede Globo, em abril, escolheu como local o Palácio das Esmeraldas, sede do governo de Goiás, para mostrar de que lado estava. Em relação a um discurso na fase mais aguda de crise com o governo, escreve que tentava mostrar a “diferença entre um chefe e um líder”, e conta ter explicado detalhes do discurso a Renan Santos, fundador do MBL e youtuber. Mandetta descortina ainda suas relações com o ramo mais tradicional da mídia. Diante da tentativa do secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, de dar ao combate à doença tons ufanistas, decidiu ele próprio tomar a frente das coletivas do Ministério da Saúde e passou a definir caminhos e diretrizes com jornalistas.

Deputado federal por dois mandatos, Mandetta foi levado à órbita do ex-capitão por Onyx Lorenzoni, ainda durante a campanha. As brevíssimas menções à Saúde do plano de governo foram incluídas sob sua orientação. Nos capítulos derradeiros do livro, ele conta ter se tornado o “álibi” dos médicos envergonhados de votar no ex-capitão. Vencida a disputa, tinha no colega o principal canal com o presidente. Talvez por isso tenha ocultado durante anos uma das revelações mais saborosas do livro: em 2016, em meio a debates sobre as draconianas Medidas Contra a Corrupção, Lorenzoni gravou deputados reclamando do projeto e criticando a Lava Jato. “Quero ver eles aguentarem a mídia em cima deles”, comentou o futuro ministro. Dali para a frente, informa Mandetta, o gaúcho se tornaria um pária no Parlamento.

Não é a única vendeta. Em janeiro, pouco antes da viagem a Davos, o presidente tentou trocar os quatro principais secretários do ministério por aliados do filho Flávio. “Quem articulou as exonerações e impôs novos nomes mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde”, escreve. O ministro resistiu, e propôs uma solução alternativa: ele e o presidente ficaram de conversar na volta. Com a pandemia, o assunto morreu.

Falta autocrítica ao ex-ministro, que não vê erros em sua atuação à frente da pasta 

Entre memórias e conjecturas, sobra pouca autocrítica. Mandetta não admite erros na condução da pandemia. Quando menciona a decisão de não ter cancelado o Carnaval, a atribui à falta de um panorama mais honesto da Organização Mundial da Saúde em relação à situação da doença da China. Inicialmente, previa uma “subida rápida” em abril até junho, quando começaria uma “tendência de desaceleração”. O Brasil vive, ao contrário, um eterno platô. E uma verdade incontornável: mesmo com um isolamento relativamente efetivo em alguns lugares, a doença se espalhou sem controle.

Poderia ter sido diferente se os agentes comunitários de saúde, um contingente de 286 mil profissionais com ampla experiência no controle de epidemias, não tivesse ficado em segundo plano na crise do coronavírus. Ainda em março, o Ministério da Saúde emitiu uma normativa para orientar o trabalho dos agentes durante a pandemia. O texto era confuso. Coube a cada município decidir sozinho. Sob sua gestão, foi encerrado o programa Mais Médicos, única alternativa a milhares de pequenas cidades do País.

O livro traz ainda uma boa metáfora do comportamento do presidente. Como um paciente que recebe uma má notícia, Bolsonaro primeiro negou a gravidade da Covid-19, falando que era “só uma gripezinha”. Depois ficou com raiva do médico, no caso, Mandetta. Depois apostou no milagre da cloroquina. A próximas fases, conforme escreve o ex-auxiliar, são de reflexão e proatividade. Nessas, Bolsonaro não chegou. Ao contrário, escorado em um aumento de popularidade, segue a bancar a versão dos fatos que colocou na praça.

Enquanto isso, o mundo ultrapassa oficialmente a marca de 1 milhão de vidas perdidas para a doença. O coronavírus supera, assim, a Aids, que matou no ano passado cerca de 690 mil em todo o mundo. E se aproxima de 1,5 milhão de mortes anuais globais por tuberculose, considerada a mais mortal das doenças infecciosas. Mais da metade desses óbitos está concentrada em quatro países: Estados Unidos, Brasil, Índia e México. Além de populosos e povoados, esses países têm em comum a liderança de homens que, cada um à sua maneira, negaram a gravidade da pandemia.

Ao longo de 200 páginas, o ex-ministro não demonstra sinais de arrependimento. Lamenta ainda que o Democratas não tenha tentado atrair a candidatura bolsonarista. Nem Mandetta foi capaz de dobrar o presidente. Poderá derrotá-lo nas urnas em 2022?

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