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O único poder moderador

Um país democrático submete-se à Constituição, não aos esbirros dos generais

O único poder moderador
O único poder moderador
No Brasil, historicamente, os coturnos desfilam pelos lugares errados – Imagem: iStockphoto
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E do senso comum a ideia de que um poder autoritário, em regra militar, pode trazer mais segurança para a população. Mas é muito equivocada. Em um poder autoritário, aqueles que detêm as “armas” terminam por entrar nos lares, matar e violar cidadãos, como o filme Ainda Estou Aqui mostrou tão didaticamente ao mundo.

Desde Aristóteles se defende que, entre todas as formas de governo, a República Democrática, que pode não ser perfeita, até porque não existiria regime perfeito, é aquela que de fato é mais eficaz para o enfrentamento de mazelas como a violência, a corrupção e a desigualdade social, às quais todo país pode estar sujeito. E, para ser uma República Democrática, é preciso que o país seja regido por leis (poder civil), não por armas (poder militar ou governos autoritários). Aliás, para evitar que os “coturnos” pisoteiem vidas, é preciso que as “armas’ estejam subordinadas ao poder civil, ou seja, a uma Constituição (ou leis, em sentido amplo).

Entretanto, no Brasil, temos um vício histórico que é a eterna tutela militar da vida civil. Parece estar em nosso DNA a ideia de que as Forças Armadas têm um papel de “poder moderador” ou de garantidoras da ordem e até da própria democracia contra um suposto “inimigo interno”. Esse “inimigo interno” (comunistas, socialistas ou qualquer um que trabalhe para o real enfrentamento da desigualdade social) seria a grande ameaça da “pátria” (aquela que, para os militares, tem como sustentáculos a família – hétero, claro – e a propriedade – de alguns, claro).

Em nome da tal pátria, os militares teriam autorização para descumprir a Constituição pela “defesa” da democracia, o que por si só é um paradoxo. Não há democracia se os poderes, todos, não estiverem submetidos ao ordenamento jurídico vigente.

No Brasil, por mais de uma vez, se quebrou a democracia com a desculpa de ­defesa da pátria e da democracia. Como se sabe, ocorreu em 1964, quando, a partir de um golpe civil-militar, foi implantada uma ditadura – esta, sim, militar –, que durou longos e sombrios 21 anos.

Mesmo com o fim ditadura, em 1985, o País não cumpriu seus deveres de justiça de transição, entre os quais está a responsabilização daqueles que concorreram para a quebra da legalidade e para a prática de crimes contra o suposto “inimigo interno”. Entre tais medidas também está a reforma dos padrões das instituições públicas que sustentaram o golpismo, sendo, na verdade, essa medida cumprida pelas Forças Armadas às avessas. Explico: em vez de ser suplantada a lógica do “inimigo interno”, promoveram uma “limpeza” em seus quadros, expulsando, perseguindo e até assassinando militares legalistas durante as décadas de 60, 70 e 80 do século passado. Nos cursos de admissão, continuam a treinar os aspirantes para seguirem a nefasta teoria. Por isso, as Forças Armadas e polícias em todo o País defendem o seu padrão golpista e a “prerrogativa” de agir à margem das leis.

Aos militaress cabe respeitar as leis. Nem mais nem menos

Não foi por falta de tentativa que os militares daquele período ainda estão impunes. O Ministério Público Federal, a partir dos anos 2000, propôs mais de 50 ações penais e cíveis contra agentes do Estado autores de graves crimes praticados durante a ditadura militar. Contudo, menos de 20 ações ainda estão em curso. Em apenas duas houve condenação em primeira instância, sujeitas a recursos.

O principal empecilho para essas ações ainda é a interpretação do Supremo Tribunal Federal, levada a efeito em 2010, no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, de que a Lei de Anistia de 1979 teria perdoado os crimes cometidos pelos agentes do Estado, em defesa da manutenção daquele governo ilegal. Segundo o entendimento do STF, ainda não revisado, apesar de promessas verbais nesse sentido, as autoridades do País celebraram um pacto (isto mesmo, um acordo não escrito, mas que está reconhecido nessa decisão do STF), segundo o qual deixar aqueles criminosos impunes seria o preço pago para a retomada da legalidade, da democracia. Com base nesse julgado, poderíamos afirmar que apenas pudemos voltar a ser uma república democrática, como definido na Constituição de 1988, porque os militares concordaram. É uma triste constatação, mas verdadeira.

Por isso, as recentes condenações, pelo STF, de militares de alta patente e ex-altos funcionários por crimes como organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado representam um marco inédito para a democracia do País, potencial quebra no padrão de impunidade histórica. Elas demonstram o funcionamento das instituições civis, o Judiciário, na defesa da ordem constitucional. Finalmente, coloca-se em prática o primado de que, em uma democracia, o poder militar submete-se ao poder civil, não o contrário. Acima de tudo, essas condenações enviam uma mensagem clara à sociedade e, sobretudo, às Forças Armadas: a lealdade é ao ordenamento jurídico e a intervenção indevida na política acarreta consequências legais severas.

Todavia, ainda que a prisão e a condenação desses indivíduos envolvidos em tentativas de golpe possuam todos esses aspectos positivos e representem uma honrosa exceção ao nosso histórico de impunidade, são apenas um primeiro passo para a consolidação de uma soberania civil e, consequentemente, da democracia brasileira. Lembremos que esses generais talvez só foram condenados por terem sido deixados ao relento pelos superiores. Isto se deu por terem descumprido a hierarquia militar, já que o golpismo de 2021 e 2022 não foi uma decisão do Alto-Comando.

Portanto, além dessas condenações, é preciso que se passe à raiz do problema, com a reversão do padrão segundo o qual se o seu Alto-Comando deliberar, as Forças Armadas teriam autonomia para decidir, eventualmente, agir contra o poder civil e a ordem constitucional. É preciso que se confira a essa instituição o papel e o respeito que lhe competem, nem mais nem menos. Só assim estaremos em um caminho livre de retrocessos para o fortalecimento de nossa democracia. •


*Procuradora da República e presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O único poder moderador’

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