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O Reformador Francisco

Em um livro e várias declarações e entrevistas o pontífice vai muito além e retoca profundamente a própria doutrina católica

O Reformador Francisco
O Reformador Francisco
Imagem: Alexey Furman/Getty Images/AFP
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O major Sergiy Volyna, comandante da 36ª Brigada dos Fuzileiros Navais ucranianos, sitiados em Mariupol, escreveu uma carta ao papa Francisco. “Procuro-o para pedir ajuda: chegou o momento em que somente as orações não bastam. Nos ajude a salvar as vidas ameaçadas, traga a verdade no mundo.” E prossegue: “Não sou católico, sou ortodoxo. Acredito em Deus e sei que a luz ganha sempre contra a escuridão. Combati por mais de 50 dias em estado de sítio e neste momento ainda tenho um tempo para escrever em meio a uma batalha que combate a cada metro da cidade sitiada. Sou um oficial que prestou juramento de fidelidade ao meu país e estou pronto a combater até o fim, apesar da monstruosa superioridade da força inimiga e das condições desumanas no campo de batalha”. E finaliza: “Os feridos morrem a cada dia porque não há medicamentos, água, comida”.

Às vezes, e até frequentemente, me ocorre falar com meu filho Gianni, que foi um excelente repórter de guerra e esteve em vários campos de batalha. Não está mais entre nós, levado por uma doença incurável, mas assim mesmo vive a meu lado e eu sinto nitidamente a presença dele. Recordo o dia em que, de volta de Moscou, já entregue ao governo de Putin, me contou como havia sido assaltado em uma calçada da capital russa por um grupo de chechenos. Eles o deixaram apenas com alguma roupa do corpo. A descrição da ferocidade e da prepotência chechena foi terrificante, nada havia de humano na atitude daquela gente desvairada.

O major dos fuzileiros escreve para o papa – Imagem: Redes Sociais

Penso agora nos chechenos que atacam e devastam Mariupol e muitos outros lugares da Ucrânia, e na carta ao papa do oficial sitiado. Mais uma vez, papa Francisco manifesta-se com a sua voz de chefe de um Estado que transcende quaisquer fronteiras. Acaba de escrever um livro contra a guerra, que considera sacrílega, uma aberração, um câncer. O livro será publicado dentro de alguns dias e, por ora, existem a respeito algumas anotações esparsas, no entanto, pistas já estão esboçadas em várias manifestações de Francisco.

Uma guerra pode ser justa, diz a doutrina. Nada disso, retruca Francisco: toda guerra é injusta

Na mensagem pascal, disse: “Faça-se a paz para a injuriada Ucrânia, tão duramente atingida pela violência e pela destruição da guerra cruel e insensata em que foi arrastada”. E mais: “Todos, dos balcões e das ruas, temos de pedir a paz. Quem tem responsabilidade pela vida das nações ouça o grito, escute, inclusive, a pergunta inquietante feita pelos cientistas há cerca de sete anos: ‘Provocaremos o fim do gênero humano ou a humanidade saberá renunciar à guerra?’” Francisco chama a atenção do mundo para um fato inegável: “Há guerras em todo canto, espalhadas como um puzzle, à espera de serem encaixadas umas nas outras para tornar mundial o conflito”.

Diz ele, depois de receber uma bandeira ucraniana: “Os poderosos ricos decidem a guerra e os pobres morrem” – Imagem: Hans Lucas/Vatican Media/CPP/AFP

Depois de dois anos, pausa determinada pela pandemia, a via-crúcis pascal voltou a ser realizada no Coliseu. Não faltou a estocada contra o que Francisco chama de sacerdote mundano, ou seja, “um pagão clericalizado”. Na noite do dia 17, domingo de Páscoa, ele ocupou longamente o vídeo da televisão estatal italiana e pregou o amor entre os seres humanos, de sorte a evitar que Caim enxergue em Abel um rival em lugar de irmão. Ministrou, assim, uma lição de amor como antídoto eficaz contra todos os conflitos. Foi uma fala instrutiva, reveladora de um papa que não hesita em frequentar os evangelhos – e desse ponto de vista é importante a citação de Mateus, um cobrador de impostos escolhido por Jesus para a transcendental missão de evangelizar.

Diante das câmeras da televisão, Francisco citou as passagens mais candentes, a mostrar que a pregação do amor foi, na passagem de Cristo pelo seu tempo, a mais notável. E todos os episódios que nos textos sagrados celebram o amor foram citados desde a história do filho pródigo até a do bom samaritano, enredos destinados a provar que a chama do amor arde naturalmente no coração de muitos homens, na esperança de que todos os demais adiram. Ao percorrer o presente e o passado, Francisco fornece nesta sortida televisiva toda uma gama de informações para ilustrar o seu pensamento e a sua crença de que só o amor vence.

Os bombardeios russos não deixam pedra sobre pedra – Imagem: Alexey Furman/Getty Images/AFP

Francisco faz revelações históricas: Cristo anotava o que via e ouvia, por escrito, assim como, por algum tempo, o marceneiro José temeu que Maria o traísse. Com as pecadoras Jesus era muito compassivo, como se deu com a mulher adúltera à qual recomendou apenas: “Vá e não peque mais”. E vem o momento em que Cristo evita a lapidação de mais uma pecadora com o simples lembrete: “Quem é sem pecado, atire a primeira pedra”. E sobre Pilatos, o papa o define como um ambicioso em busca de promoção, cuja ação, lavar as mãos na hora da decisão, define-o sem deixar margem a dúvidas.

Ele pretende visitar Kiev. Obviamente, não falta quem queira dissuadi-lo, a começar pela mídia

A televisão teve um papel muito importante na divulgação do pensamento papal. Em um programa transmitido no domingo 17, intitulado À Sua Imagem, o papa foi entrevistado demoradamente pela jornalista Lorena Bianchetti e acrescentou muitos pensamentos àqueles desenvolvidos em outros momentos e no seu livro. A certa altura, rememora a situação da morte na cruz no instante em que Cristo invoca Deus: “Ó Pai, por que me abandonaste?” Diz Francisco: “Como disse Dostoievski em Os Irmãos Karamazov, a batalha entre Deus e o Diabo está no coração do homem. É aí que se decide o jogo e é por isso que precisamos de mansidão, de humildade, para dizer a Deus: Sou um pecador, mas Tu me salvaste”.

Em frente à dor, Francisco afirma mais adiante, durante a entrevista: silêncio e choro. “Chorar é um dom de Deus, a quem devemos pedir a graça de chorar perante nossas fraquezas, perante as fraquezas e as tragédias do mundo. Volta à minha memória Dostoievski e aquele livrete que funciona como resumo da sua filosofia e tudo o mais, intitulado Memórias do Subsolo”. Ocorre ao papa a lembrança das Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires: “Expunham seus rostos pelos seus filhos e toleravam controles os mais vergonhosos”. E mais: “Jesus, a caminho do Calvário, para em frente a um grupo de mulheres que choram. As mulheres são a força. Aos pés da cruz, os discípulos fugiram, as mulheres, não”. Logo mais, o papa refere-se ao problema dos refugiados: “Na cruz estão os povos dos países da África, e em guerras no Oriente Médio, na América Latina. Estamos a viver uma guerra mundial aos pedaços”.

Esta cena tornou-se comum na Ucrânia – Imagem: Sergei Supinsky/AFP

“Eu compreendo os governantes que compram armas”, diz Francisco. “Não os justifico, mas os compreendo. Este é o lado cainista da guerra. Vivemos em um esquema demoníaco.” Novamente em defesa da mulher, Francisco evoca a figura da esposa de Pilatos, a qual recomenda ao marido que não se envolva contra um homem justo. Ao cabo da entrevista, a jornalista pergunta: como devemos viver a situação atual? Francisco fica em silêncio.

O papa já pensa na sua próxima tarefa: contra a mundanização da própria Igreja, pelo menos em alguns setores. E, deste ponto de vista, repudia de vez o conceito de guerra justa, que de alguma maneira sempre foi aceito pela doutrina católica. “Não existem guerras justas”, disse, dirigindo-se às representações participantes do Congresso Internacional, com o objetivo de “educar a democracia em um mundo fragmentado”. Mas, no fundo, tudo se resume em uma observação que promete acusações de esquerdismo, embora não obscureça, muito pelo contrário, a opção católica pelos pobres.

Cristo chama o cobrador de impostos Mateus para escrever o Evangelho – Imagem: Reprodução

Há também quem registre, por exemplo, Il Corriere della Sera, uma crítica a Putin, quando o papa proclama que “os ricos poderosos decidem a guerra e os pobres morrem”. Segundo Tomás de Aquino, que interpretava Santo Agostinho, a guerra é “justa” se declarada por uma legítima autoridade e conduzida de formas sintonizadas com o objetivo do conflito. Com isto, Francisco nega validade às lições dos pensadores católicos. Desta maneira, será necessário rever a Doutrina Social e o Catecismo.

Neste exato instante, papa Francisco começa a cogitar de uma visita a Kiev. Naturalmente não falta quem queira dissuadi-lo, inclusive nas páginas midiáticas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O Reformador Francisco”

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